ÀS GAIVOTAS, AOS CÃES E AOS PRÓXIMOS ANIMAIS ⬤ Tânia Geiroto Marcelino

ÀS GAIVOTAS, AOS CÃES E AOS PRÓXIMOS ANIMAIS ⬤ Tânia Geiroto Marcelino
Gaivotas Em Terra

por JOÃO LEITÃO

 

Às gaivotas, aos cães e aos próximos animais: ainda do lado de cá da porta e perante a sua carga poética, lemos o título da exposição da Tânia como se de um verso se tratasse. Subimos as escadas e entramos. A extensão e a imagética presentes no verso que, há segundos, contemplámos, são, num primeiro e distraído olhar, contrariadas pelo que no espaço expositivo parece não existir. Deparamo-nos com uma sala (quase) vazia e, por isso, questionamo-nos se nos enganámos na divisão ou, no limite, se o título da exposição não será, afinal, a própria exposição. No entanto, as tímidas presenças dos dois-três únicos objectos que se revelam manifestamente visíveis respondem-nos: sim, estamos no sítio certo.

 

Ainda à entrada da sala, olhamos esses mesmos objectos, colocadas em extremos opostos: à esquerda, dois volumes envoltos em tecido branco (troncos, talvez) e, à direita, uma incompleta cadeira (ou será um banco?). O nosso olhar salta de uns para o outro, para, depois, regressar aos primeiros. É neste repetido movimento esquerda-direita/cadeira-troncos – neste involuntário percorrer do olhar pela totalidade da divisão em que nos encontramos – que, gradualmente, começamos a reparar na existência de pequenos vultos indefinidos espalhados pelo espaço: objectos quase invisíveis, os quais, dada a sua reduzida escala, desdizem a monumentalidade e o aparato contemporâneos, bem como as suas lógicas operantes, segundo as quais são os objectos-imagens que, mesmo quando não o pedimos, connosco vêm ter. Somos, então, impelidos a sair da entrada da sala e a deambular pela divisão, na esperança de tornar o quase invisível visível.

 

Deambulamos e aproximamo-nos quer dos diminutos objectos que, há pouco, eram apenas manchas cromáticas, quer de outros microscópicos objectos que ainda não tínhamos suspeitado que também naquele espaço se demoram. Os objectos vão aparecendo – na parede, no chão, nos cantos, no parapeito – e nós, com uma atenção progressivamente redobrada (não nos vá escapar algum), vamos descobrindo-os. À medida que mapeamos a geografia das coisas que na sala existem, vamos delas aproximando-nos, cada vez mais. Diante destes objectos-pormenores – que exigem que não só os olhemos, mas também que com eles estejamos –, é impossível respeitar as regras de conduta museológicas. Inevitável é, assim, darmos por nós com os olhos a cinco centímetros da parede, de joelhos no chão e de rabo para o ar, quase como se os tivéssemos de tocar para os ver.

 

É através desta inusitada aproximação física que, finalmente, percebemos o que são estes objectos – dois lápis, uma moeda, um copo descartável, um prato, uma pedra, uma folha impressa –, para, logo a seguir, compreendermos que as suas materialidades não os esgotam. Em boa verdade, quanto mais próximos deles estamos e quanto mais tempo com eles nos demoramos, mais pressentimos que os mesmo são, também e sobretudo, feitos de intimidade. Começamos, então, a descobrir nestes objectos – triviais e, muito provavelmente, retirados do quotidiano da Tânia – pequenas marcas do tempo que sobre eles passou e pequenos resquícios das intervenções-violências que os atingiram, por mais ligeiras e delicadas que sejam: uma amputação de membros, um contorno-área, um corte transversal, uma cor arrancada para fora, um amarrar metálico, uma quebra-desunião, um amortalhar, um emolduramento de um nome. No seu conjunto, estas marcas e estes resquícios, por sugerirem histórias secretas, parecem querer coleccionar e documentar, de uma forma quase ritualística e como se páginas de um diário fossem, fragmentos de experiências e relações profundamente pessoais. Por esta razão, estes objectos deixam de ser um prato, um lápis ou uma moeda e passam a ser – insubstituivelmente e de um modo muito particular – aquele prato, aquele lápis e aquela moeda.

 

Mas, então, o que nos é possível saber sobre estes objectos e sobre os motivos que ali os trouxeram? O que nos é possível saber sobre este reconhecível quotidiano que não é o nosso? O que nos é possível saber sobre esta intimidade que nos é estranha? Despertamos, deste modo, o pressentimento de que o estar e a proximidade física que temos vindo a estabelecer com estes objectos se transformaram numa qualquer invasão de privacidade. Nasce em nós a sensação de que estamos a vasculhar e a violar uma intimidade alheia. Como se, silenciosamente, espreitássemos pela fechadura de uma porta fechada à chave; como se, sem autorização prévia, remexêssemos o interior de uma caixa de recordações; como se folheássemos um desconhecido álbum de fotografias e quiséssemos dar nomes àqueles que vemos, mas que não conhecemos. Porém, porventura não haja mal nenhum nisto. Os objectos em questão parecem querer ser (e, até, pedir-nos para serem) invadidos. São objectos-rascunhos-incógnitas que não se querem fechar sobre si próprios, que se recusam a definir-se e que, por isso mesmo, sobre eles nada nos dizem. Talvez seja por isso que todos eles dispensem títulos – até mesmo aquele que se nega a si próprio, untitled de seu nome –, para que, assim, sobre eles possamos livremente falar; para que, assim, para eles possamos inventar nomes e verbos; para que, assim, sobre eles possa actuar um constante estado de metamorfose e de não término. Como se as suas invariáveis incompletudes fossem as suas únicas condições de sobrevivência.

 

Estes objectos são, como Tânia os define, inagarráveis, esquivos, inomináveis e intraduzíveis, ou seja, objectos que somente existem através dos movimentos de aproximação (física e especulativa) de que são alvo. São objectos que acolhem a falha, a imprecisão e a tentativa como algo fundamental, assumindo, para o efeito, que nenhuma aproximação-tradução-nomeação é pior ou menos válida que a própria coisa que se procura agarrar-traduzir-nomear. Diz-nos Borges que “A superstição da inferioridade das traduções – avalizada pelo conhecido ditado italiano – provém de uma experiência bem distraída”[1]. O mesmo parecem dizer-nos Tânia e os seus (no sentido íntimo do pronome) objectos. Que venham os próximos animais e, com eles, as próximas aproximações.

 

 

[1] BORGES, Jorge Luis, (1932), “As versões homéricas” in Obras Completas, vol.I (1923-1949), trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Editorial Teorema, 1998, p. 247.

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