VIA CRUCIS ⬤ Rafaela Jacinto

VIA CRUCIS ⬤ Rafaela Jacinto
Gaivotas Em Terra

   por Eduardo Batata

– ESPETÁCULO ENQUANTO ROTINA – QUEBRA DA EXPECTATIVA

 

O teatro e a performance habituaram-nos a padrões que nos ajudam a prever como será um objeto artístico, seja pelos recursos utilizados, seja por padrões que são frequentemente reproduzidos.

A criação artística contemporânea assenta (agora) na busca de estratégias para quebrar a previsibilidade rítmica e estética.

 

Dois exemplos:

– Espetáculo enquanto rotina

– Quebra da expectativa

 

– ESPETÁCULO ENQUANTO ROTINA

Executamos atos quotidianos, todos os dias. São atos quotidianos. Envolvem uma rotina. Algumas de nós utilizam mecanismos lúdicos para quebrar essa rotina. Um espetáculo pode ser uma dessas bolhas, como mecanismo de escape e entretenimento. Atendendo a todo o protocolo que pode existir quando nos dirigimos a um espaço específico de apresentação, para vermos um momento performático. Chegar, pagar, sentar, ver, ir embora.

Rafaela Jacinto quebra este código com a proposta de cinco momentos de oração/performance. Cinco momentos ao longo do mesmo dia, cinco interrupções nas outras rotinas e atos quotidianos. É proposto ver uma oração como um ato quotidiano, entre refeições, trabalho ou outras tarefas diárias. Laudes, Hora intermédia, Vésperas, Ofício de leituras e Completas (às quais acresce um momento performativo final). Com base na “Liturgia das horas – Ofício Divino” (da Ordem de São Bento, Kathy Acker, Santa Catarina de Sena e Chiloé Sevigny.).

A liturgia das horas é uma oração pública e comunitária, oficial da igreja católica dividida em diferentes partes, feita em diferentes momentos do dia, com o objetivo de lembrar durante o mesmo, a obra (ofício) de Deus.

Ao adotar esta tipologia, a Rafaela introduz a sua performance numa pratica quase quotidiana em que nos deslocamos várias vezes ao longo do dia à Rua das Gaivotas 6, para assistir as suas performances/orações. Estas surgem como micro-momentos bolha em que se sai de uma rotina, para entrar numa outra. A utilização de signos frequentemente usados na celebração religiosa ajudam-nos a entrar num outro imaginário. O cheiro da sala, o altar, a cruz, a luz, e o minimalismo ritualístico. Quebrados pela leitura através de um telemóvel em vez do suporte tradicional, mostrando que se pretende deslocar a oração para o espaço da performance e para o atual quotidiano. A performatividade existente num momento de oração e transpô-la para o espaço performativo, é o suficiente para evidenciar a condição altamente teatral e performática dos ritos religiosos, nomeadamente dos católicos. Não só́ do momento da oração, seja em casa ou na igreja, mas também de uma missa, de um funeral, de um casamento, de um batismo.

 

– QUEBRA DA EXPECTATIVA

Via Crucis ou Via Sacra é o caminho que Deus percorre do pretório (tribunal) à cruz. Do momento da decisão ao momento do fim, passando por quatorze estações, numa evidência ritualística, com carácter de procissão, de caminho de fé́, de fim e de crescimento de expectativa até à crucificação. Esta surge como criação de uma imagem final, de consequência e de apoteose. O fim é mais importante para quem o vê do que para Cristo.

Após as cinco orações, a Rafaela propõe-nos um momento que intitula de performance final. De acordo com o código criado durante as orações e tendo em conta os códigos ritualísticos instaurados, facilmente poderemos associar esta performance final a uma apoteose espiritual ou ritualística, dentro da mesma estética até aqui explorada. Cumprindo os ideais de celebração católica.

No entanto, após as completas (oração que encerra o dia) o ritmo é cortado por um momento assumidamente teatral que nos tira da igreja para um imaginário trash. Entre a série Rupaul’s Drag Race, uma ida ao Finalmente, um throwback aos Ballrooms e às suas categorias. Do “lip sync” ao “reading”. Uma libertação da opressão religiosa feita a comunidades queer através da estética teatral trash e de uma apropriação e alteração da expectativa religiosa e da expectativa do espetáculo. Em vez de um Deus universal, um Deus que saiu do Trumps para vir destruir a expectativa criada.

Destruir a expectativa funciona também com desconstrução do código do espetáculo e surge para provocar uma interrogação sobre estruturas de apresentação e de relação da plateia com a expectativa de auto-realização própria. A noção de fim de um objeto artístico relaciona-se diretamente com o cânone do mesmo e com uma quase legitimação intelectual da plateia ao ver esse objeto. Quebrar isto, é quebrar com um código e questionar novamente o papel do público, tirar-lhe aquilo que pensa que vai ver.

O paralelismo entre espetáculo e ritual é indissociável. Encontram-se paralelos em dois campos distintos do quotidiano. Habitam o nosso dia em separado, com importâncias e cargas diferentes mas com muito poucas diferenças. Ir a um espetáculo como se vai a uma missa e ir a uma a uma missa como se vai a espetáculo, o teatro inspirou-se na igreja e no ritual, tal como a igreja se inspirou, sem dúvida nenhuma no teatro.

Download