RÁDIO AFÓNICA ⬤ Nuno Marques Pinto

RÁDIO AFÓNICA ⬤ Nuno Marques Pinto
Gaivotas Em Terra

por João Mineiro

 

Rádio Afónica e a linguagem como experiência

 

“Rádio Afónica” fazia-se cena, na Rua das Gaivotas 6, com Nuno Marques Pinto a ocupar o espaço e o tempo, com os sons e os silêncios, o corpo e a voz. E enquanto essa relação prolongada e imprevisível se estabelecia e nos desafiava, não me saía da memória uma lembrança bem antiga, passada numa aula de educação musical, na altura disciplina obrigatória do 2º ciclo. Nessa aula, a professora perguntou-nos qual a melhor parte do corpo para fazer música. Uns responderam as mãos, exemplificando com palmas ritmadas, estalando os dedos, fazendo da mesa instrumento de percussão. Outros bateram os pés, em ritmo de marcha, folclore, gigantones ou Zés Pereiras. Mas ninguém acertou na resposta que a professora procurava: a voz. É a voz que mais recursos nos oferece para produzir os mais variados sons. Só que a ideia de som a que ela se referia era pensada como matéria de comunicação ao serviço de uma determinada intenção humana: um cantar de trabalho e de esforço, um som de festa e folia, uma música de perda e saudade, um ritmo de celebração e cerimónia. O som era-nos apresentado como instrumento para comunicar algo que o antecedia, que estava para lá dele. A música era-nos representada a partir de uma ideia de propósito, de tradução e de intenção. “Rádio Afónica” lembrou-me esta história, mas em sentido inverso, ao confrontar-me com uma ideia de som não como linguagem e instrumento para algo que lhe é externo, mas como matéria em si mesma constitutiva de uma experiência própria, nova, única e irrepetível. Destituído de intenções narrativas ou instrumentais, o som projetado pelo corpo e pela intenção de Nuno Marques Pinto, ampliava o universo de imaginários que cada um e cada uma de nós podia convocar naquele encontro. O que nos era proposto era uma ideia de som enquanto linguagem que é poder instituinte, isto é, que não procura traduzir uma realidade externa, antes ambicionando construir uma realidade simbólica nova, que não existia antes daquela experiência, daquela relação, daquela presença, daquele encontro. E pensando nesses termos, veio-me também à memória uma outra referência, esta mais recente, quando Condutor, um dos obreiros dos Buraka Som Sistema, refletia sobre o facto de algumas pessoas questionarem ou criticarem as letras do grupo, que faziam refrões com “Bababa” ou com “Wegue Wegue”. O músico respondia que muitas dessas pessoas confundiam “o conteúdo poético tradicional” com o “conteúdo expressivo”, onde o som que sai da voz é, em si mesmo, um elemento percussivo, com propriedades performativas e que abre espaço à relação que se institui sempre que a música é a matéria de encontro dos corpos num determinado tempo, e num determinado lugar. Neste sentido, também “Rádio Afónica”, ao desconstruir a linguagem, explorando os diferentes mecanismos que a língua encerra, e que não se circunscrevem aos seus usos circunscritos, instrumentais e narrativos, ecoa num diálogo com os trabalhos que, de Artaud a Novarina, desafiam a sujeição do teatro, da performance ou da palavra, ao texto e à intenção narrativa. Trabalhos que, por outras palavras, contrariam a hegemonia do texto por relação com a experiência. Como aprendi com o encenador brasileiro António Guedes, que esteve em Portugal durante alguns anos a fazer a sua pesquisa teatral e doutoral a partir de Novarina[1], a palavra, tal como o som, podem ser trabalhados na sua força e concretude, destituídos de intenções épicas ou narrativas. E colocando o foco na experiência, na materialidade do encontro, todas as possibilidades ficam em aberto. A linguagem, em vez de comunicar conteúdos, instaura um novo tipo de relação. Essa relação, do meu ponto de vista, e pelo menos por agora, não deixa de assumir uma natureza comunicativa, porque não há imaginários produzidos no vazio social e destituídos de uma intenção humana. No entanto, sempre que a linguagem é pensada em termos não-instrumentais, didáticos ou narrativos, ela assume contornos de uma experiência inteiramente nova, emancipada, imprevisível, e, neste sentido, potencialmente mais livre e libertadora.

 

[1] António Guedes, “Uma certa perspectiva da palavra na cena contemporânea: falar não é comunicar”, Tese de Doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/29937/4/ulfl238843_td.pdf

 

 

Disseminário sobre RÁDIO AFÓNICA de Nuno Marques Pinto, peça estreada na Rua das Gaivotas 6 a 27 Janeiro 2022
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