LUZ NEGRA | RASTRO, MARGEM, CLARÃO ⬤ Terceira Pessoa

LUZ NEGRA | RASTRO, MARGEM, CLARÃO ⬤ Terceira Pessoa
Gaivotas Em Terra

por João Estevens

O DESASSOSSEGO CALMO DA LUZ NEGRA

 

‘Luz Negra’ é uma performance inserida num projeto maior, designadamente ‘Rastro, Margem, Clarão’, no qual um conjunto de criadores se propõem a pensar a obra do escritor Rui Nunes. A primeira consideração que devo fazer é a de que não conheço a obra de Rui Nunes, pelo que tudo o que possa discorrer neste texto será sempre incapaz de interpretar a relação deste objeto performativo com a escrita do autor – um dos grandes propósitos do projeto. Assim, o presente texto não é mais do que um olhar acerca da performance a partir do ponto de vista de quem nunca leu o autor, iniciando uma especulação sobre o trabalho do escritor a partir da experiência performativa.

Não obstante, a sinopse do trabalho dá-nos algumas pistas em relação ao interesse na escrita de Rui Nunes, afirmando-se que a obra do autor encerra a escrita enquanto ato performativo. Para tal, recorre a várias situações de vazios, destacados a negro, ou rasuras, por exemplo. Efetivamente, esta preocupação de apresentação do texto e de gestão do texto no seu espaço natural – o livro – parece convocar uma modulação do ritmo da leitura e uma estruturação da forma comunicacional de significados. Será que conseguimos identificar estas características na performance?

 

 

A DIMENSÃO PERFORMATIVA

A proposta tem no corpo, enquanto lugar, uma premissa fundamental. Quando o espetador entra no espaço performativo, a ação – que remete para uma ideia de escrita – já decorre. Ou seja, há um princípio de continuidade assumido desde o primeiro momento. Em particular, este mecanismo é o suficiente para expandir a ação visível e anunciar o começo da performance num tempo anterior ao da chegada do espetador – se há cinco minutos ou cinco horas antes, não interessa.

O espaço onde se desenrolam as ações iniciais é delineado por um desenho de luz retangular no chão. No interior, um material plástico prateado preenche este ‘ringue’ habitado por dois corpos. A materialidade deste ‘tecido’ é explorada criando texturas e sonoridades, que acompanham o movimento executado pela dupla de performers – quase sempre assumindo uma ação síncrona.  Este espaço dentro do espaço, que acaba por ser rompido nos últimos blocos da composição dramatúrgica, evidencia uma separação entre os corpos que estão dentro – os dos performers – e os corpos que estão fora – os dos espetadores. A rutura com a performatividade delimitada a este subespaço é um momento de libertação face a alguma contenção, conferindo alguma aproximação dos corpos, fazendo com os espetadores se aproximem e, em certa medida, se integrem na ação performativa.

O lugar do texto-palavra é reduzido, existindo um momento em que um dos performers escreve com giz em ardósia e algumas situações de texto gravado em áudio no decorrer da performance. O áudio espacializado no espaço dá movimento ao texto, percorrendo a sala com sussurros em movimentos de aproximação e de afastamento. Esse texto acaba por não ser completamente percetível – assume-se que por intenção da dupla de criadorxs ao invés de condicionalismos do espaço de apresentação – gerando palavras que ecoam e sugerem imagens e relações com a ação performativa, mas sem nunca se tornarem totalmente compreensíveis e explicativas do movimento. A evolução dramatúrgica da relação entre os corpos dxs performers também não é evidente. A referida sincronia inicial em ações semelhantes é recuperada ao longo do objeto, sendo pontualmente interrompida por momentos em que existe uma articulação complementar entre os corpos e outros onde as ações dxs performers apresentam ruturas ligeiras, mas significativas, com a sincronia de movimento. A composição dramatúrgica parece encontrar-se estruturada em diferentes blocos, estando as transições entre os mesmos pouco interligadas, assemelhando-se a uma colagem de diferentes partes com vista à composição das imagens e à gestão dos ritmos e tempos da performance.

Por último, uma referência à inexistência de frente da ação, permitindo uma ação em 360º, oferecendo diferentes perspetivas aos espetadores que circundam o espaço performativo. Esta liberdade dada ao movimento e à ação performativa não é, infelizmente, acompanhada pela possibilidade de os espetadores captarem as perspetivas múltiplas das imagens criadas. Quiçá por imposições do atual contexto da COVID-19 ou por decisão da criação, a atribuição de um lugar único, sentado, e com uma perspetiva fixa é a única opção de fruição oferecida aos espetadores. A mobilidade ao longo do decurso do objeto traria alguma agência e uma multiplicidade de perspetivas, que poderiam – do ponto de vista do espetador – ser interessantes de explorar.

 

 

SUBJETIVIDADE DA POÉTICA E IMERSÃO

A evolução do objeto performativo parece passar por diferentes ‘quadros,’ que correspondem a blocos dramatúrgicos dissemelhantes, encerrando uma ausência de narratividade linear e um nível elevado de abstração. No fundo, o convite para os corpos dos espetadores se juntarem é um convite para testemunharem o exercício da performatividade enquanto viagem num percurso preenchido por vazios e subjetividade, procurando-se uma interpretação singular para o que está a ver. Há, portanto, uma subjetividade poética inerente ao objeto, na medida em que os sentimentos, sensações e significados pessoais são reforçadamente convocados para a experiência do espetador.

Há um particular destaque que me apraz fazer em relação a este objeto, nomeadamente o desenho de luz. É um dos grandes eixos desta criação. A sua subtileza e transformações graduais são fundamentais para a criação de um jogo de luz e de sombra, de evocação do visível e do invisível, que sugere a criação de mistério e de inexplicabilidade, por oposição a uma demonstração clara do todo. Assim, o desenho de luz, é um dos grandes responsáveis pela eficácia e beleza das imagens desta criação.

Este objeto parece propor-se a gerar um ambiente imersivo e contemplativo para os espetadores, que aparenta ajustar-se à proposta dramatúrgica. Porém, a natureza performativa do objeto acaba por não explorar grandemente o seu potencial instalativo, privilegiando a eficácia, a modulação e a gestão de tempos mais tradicionais nas criações performativas de palco. As ações acabam por não se estender, nem expandir, surgindo numa composição de movimento certa e exata, onde há pouco espaço para o vazio, ou para rasuras que sugerem o erro ou o não exato – características apontadas na sinopse à escrita de Rui Nunes.

À ausência de libertação e explosão da ação performativa adiciona-se a duração reduzida do objeto, cuja extensão – cerca de uma hora – dificulta o potencial contemplativo e imersivo que aparenta almejar – desde logo devido à constante presença de uma camada sonora em pano de fundo. Em certa medida, parece tratar-se de um objeto que não beneficia das premissas de apresentação num teatro, com um tempo de começo e de fim definidos, com o lugar rígido e sentado do espetador, ou com uma construção da ação certa, exata e eficaz. Tal como quando se lê um livro, o leitor começa e termina quando quer, tem tempo para parar e recomeçar, ou executar a leitura num só fôlego. Em suma, a proposta poderia beneficiar não só de uma interpretação da escrita de Rui Nunes, mas também de um olhar para o próprio exercício formal da leitura destas obras. Finalizo relembrando o leitor deste texto acerca do meu total desconhecimento sobre a obra de Rui Nunes, podendo apenas especular sobre a mesma e as suas relações com a performance de Ana Gil e Nuno Leão.

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