EFÍGIE | Princípios & MAGMA | No Limite da Selvajaria ⬤ Flávio Rodrigues

EFÍGIE | Princípios & MAGMA | No Limite da Selvajaria ⬤ Flávio Rodrigues
Gaivotas Em Terra

por JOÃO ESTEVENS


“A criação performativa artesanal: performances ‘feitas à mão’” 

 

A constante necessidade de encontrar um género para catalogar os trabalhos em artes performativas é um dos primeiros desafios que o espetador encontra ao assistir aos trabalhos de Flávio Rodrigues. Esta aparente necessidade de catalogação disciplinar tende a ser alimentada pelas instituições, pelos festivais, pelos média e pelas modalidades de apoio à criação contemporânea existentes, estendendo-se, posteriormente, ao próprio espetador. Contudo, tanto EFÍGIE-PRINCÍPIOS como MAGMA-NO LIMITE DA SELVAJARIA apresentam uma linguagem fluida, evidenciando a introdução de códigos distintos, que vão da escultura à composição sonora, passando por elementos do desenho, do teatro e da dança. Ou seja, a primeira constatação que urge fazer é sobre a natureza híbrida destas performances, que se assemelham a poemas performativos sem linearidade narrativa. A hibridez na criação contemporânea não é uma novidade, mas continua em expansão: (i) na tentativa de procurar (re)definir as fronteiras disciplinares dos campos artísticos nucleares, e (ii) enquanto consequência natural de percursos artísticos alternativos e pluridisciplinares.

 

Ambos os trabalhos apresentam uma aparente simplicidade cénica, que os colocam muito próximos dos objetos performativos tradicionalmente apresentados em contexto galerístico. De resto, o rasto deixado pelo evento performativo é a criação de uma instalação que jaz no espaço por breves momentos, designadamente até que o último espetador abandone a sala onde decorreu o evento. Se no espaço galerístico estas instalações poderiam perdurar, a dinâmica própria de um espaço performativo faz com que a longevidade destas instalações seja particularmente diminuta. A ausência de aparato performativo associado à delicadeza, à precisão e à intuição com que o performer constrói e executa as ações introduzem uma dimensão artesanal, no sentido em que existe recurso a uma menor sofisticação e elaboração técnica para a consecução destes trabalhos. A adjetivação artesanal é utilizada aqui sem quaisquer conotações pejorativas, uma vez que é esta característica que introduz maior singularidade aos objetos apresentados, ‘obrigando-os’ a buscar soluções alternativas às da produção dominante, onde os pressupostos da construção são amplamente reconhecíveis e identificáveis. É de ressalvar a forma como a intensidade do performer, a eficácia na sua tomada de decisão e a milimétrica composição da sua partitura de ações são suficientes para capturar o espetador e mantê-lo engajado do princípio ao fim.

 

Estes trabalhos assentam na relação entre o corpo do performer e uma série de objetos (escolhidos em função das suas propriedades materiais e dos seus potenciais efeitos), que podem ser manuseados pelo performer para obter uma ação ou para criar uma imagem. Apesar de este ser o padrão de ambas as criações, a abordagem dramatúrgica é bastante distinta. Se, no primeiro trabalho, existe uma operação de referência clara que se repete ao longo da performance, o segundo trabalho incorpora diferentes premissas na relação com os objetos, que, não sendo contraditórias, não evidenciam a mesma clareza. Em EFÍGIE-PRINCÍPIOS, o performer circula pelo espaço indo de encontro a diferentes estações (ilhas instalativas) para interagir com os objetos ali existentes. Após o término da interação, o performer segue para a estação seguinte e passa para um outro objeto, sem que existam ligações diretas entre a passagem de um momento para o outro. São ações isoladas, que dialogam e se fundem conceptual e dramaturgicamente, mas que não necessitam de uma passagem de A para B pelo simples facto da premissa de construção desta performance partir da repetição de uma só operação. Já em MAGMA-NO LIMITE DA SELVAJARIA, há um conjunto de operações que são executadas ao longo da performance. Num primeiro momento, não há distanciamento entre o performer e os objetos, estando o performer totalmente coberto com um fato militar de camuflagem enquanto agita uma bandeira preta. Ou seja, o corpo do performer e o objeto fundem-se para a construção da imagem e da ação, sendo apenas um elemento. Em outras fases da performance, assiste-se ao performer a trocar de roupa ou a utilizar, pela primeira vez, a sua voz, sem que estas operações sejam totalmente claras para a proposta. Posteriormente, a habitual operação do performer utilizar objetos para o estabelecimento das suas ações, volta a ser instituída enquanto padrão. Também aqui, há variações face ao primeiro trabalho, na medida em que há relações duais em convivência durante o evento performativo. Por um lado, há relações em que a utilização do objeto é exclusiva e visa a criação de uma ação, não existindo uma segunda utilização desse mesmo objeto. Por outro lado, estabelecem-se outro tipo de relações onde a criação de uma ação, a partir do manuseamento de objetos, estabelece pontos de referência para uma ação posterior. Ou seja, há o convívio de diferentes operações, umas mais concretas e delimitadas, outras mais abertas e com pontos de ligação com outros momentos da performance.

 

Estas diferenças não implicam que EFÍGIE-PRINCÍPIOS e MAGMA-NO LIMITE DA SELVAJARIA não partilhem muitos dos pressupostos. Efetivamente, são várias as condições partilhadas, desde logo a possibilidade do espetador circular pelo espaço, um desenho de luz que se mantém sem variações ao longo de toda a performance, o preenchimento sonoro com uma faixa que está presente em permanência e que cria um ambiente para que as ações aconteçam, ou a ausência de começo das performances. Em ambos os casos, quando o espetador entra na sala, a performance já está ativa, pelo que o performer já se encontra a executar uma ação, ou seja, o ponto de partida do evento performativo estabelece-se em pontos distintos para o performer e para o público, possibilitando a expansão temporal da ação inicial para uma ideia de continuidade. Em ambos os trabalhos, a construção dramatúrgica não parece pretender encerrar interpretações numa só visão, sendo construída a partir de significados abertos e de exercícios sobre o simbolismo, que permitem o surgimento de múltiplas narrativas para o evento performativo, aquelas descritas na sinopse das performances, bem como tantas outras criadas pelos espetadores. O evento performativo assemelha-se, em certa medida, a um lugar de ritual com estranha beleza, num quotidiano reconhecível, mas com significados por descodificar. Ainda que seja criada uma relativa proximidade, os espetadores não participam diretamente em qualquer momento das performances, pelo que assumem aqui o lugar de testemunhas das mesmas.

 

São trabalhos que refletem, de um modo muito próprio, sobre o movimento. Primeiramente, pelo percurso do corpo do performer ao longo dos eventos performativos, que traça geometrias precisas e exatas, utilizando ainda a repetição desses percursos para marcar os ritmos das performances. Adicionalmente, a ativação dos objetos implica o movimento do corpo do performer, mas também, recorrentemente, o movimento dos próprios objetos, que acabam por ganhar um foco muito evidente nas suas propriedades e no seu corpo em movimento. Por último, a própria movimentação do público ao longo das performances em função das ações. Assiste-se aqui a uma coreografia espontânea com movimentos de aproximação e de afastamento face à centralidade da ação, de sentar e de levantar, ou de deslocação em busca de uma outra perspetiva. Não obstante esta ser uma premissa partilhada pelas diferentes performances, há uma eficácia distinta. Se em EFÍGIE-PRINCÍPIOS a escala das ações e a movimentação do performer acarretam a natural movimentação do espetador, em MAGMA-NO LIMITE DA SELVAJARIA ela acaba por ser pouco necessária. Isto porque o trabalho exibe muita centralidade e alguma frontalidade na sua execução, exigindo uma menor circulação dos espetadores pelo espaço. Ainda assim, ambos os trabalhos permitem pensar a composição de uma coreografia expandida, que sai fora das referências tradicionais que temos no campo da criação em dança contemporânea.

 

As apresentações de Flávio Rodrigues na Rua das Gaivotas 6 constituem uma mostra de trabalhos desafiantes para o espetador, de um criador que apresenta uma linguagem muito maturada, pensada e precisa, que questiona a ideia de um formato portável e pronto a circular de black box para black box. Há aqui uma relação de interdependência com o espaço de apresentação e com o tempo da apresentação, privilegiando as especificidades e a poética do site-specific. Talvez assim se compreendam as variações encontradas nos registos documentais de vídeo destas performances. O criador introduz alterações aquando de cada apresentação, mostrando a elasticidade destes trabalhos e os princípios pelos quais rege os seus atos de criação. Por último, há que mencionar as dificuldades sentidas pelo artista em apresentar trabalhos da sua autoria em Lisboa. Quiçá isso se deva à natureza híbrida dos mesmos e às eventuais dificuldades de catalogação por parte das instituições culturais, ou talvez sejam outras as razões. O relevante de assinalar é que este é mais um exemplo claro das dificuldades de circulação nacional de objetos performativos com pouco aparato, que exploram linguagens híbridas em busca de ruturas com as linguagens e as estéticas dominantes. As portas das instituições continuam a estar demasiado fechadas para xs artistas que não têm um acesso privilegiado, assente nas relações interpessoais, aos mesmos. A materialização desta incapacidade é uma tendência para a reprodução das assimetrias na distribuição dos recursos de produção, a necessidade de uma criação acelerada e em massa, e a fraca circulação que estes trabalhos fazem pelo território nacional.

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