DUAS PEÇAS DE XADREZ ⬤ Joãozinho da Costa

DUAS PEÇAS DE XADREZ ⬤ Joãozinho da Costa
Gaivotas Em Terra

por Marisa F. Falcón

disseminário
DUAS PEÇAS DE XADREZ Joãozinho da Costa
25 – 27 Novembro 2020

 

Joãozinho da Costa apresentou o seu primeiro trabalho como encenador e autor do texto Duas Peças de Xadrez na Rua das Gaivotas 6. Luis Mucauro, Ralaisa Embaló e o próprio autor dão voz e corpo a esta história sobre uma família de emigrantes da Guiné- Bissau que se estabelece na Grande Lisboa, num bairro onde moram outras famílias de emigrantes, maioritariamente oriundas de países africanos. A história é contada através das vivências de dois dos irmãos que acabam presos em alturas diferentes, mas que coincidem na prisão. Enquanto uma das personagens narra a sua própria história, a do outro irmão é contada pelos outros membros da família.

Na sala em penumbra ecoa a voz de Allen Hallowen. É o Rei da Ala que se ouve enquanto o público se senta e xs performers, já em palco, executam movimentos mecânicos que fazem lembrar as peças de um tabuleiro de xadrez, imagem evocada, pelo próprio título da peça e pelas fitas coladas no chão que parecem delimitar o espaço cénico.

As personagens, os locais que evocam e o uso da linguagem trazem para o centro de Lisboa uma outra geografia, fisicamente próxima, mas simbolicamente distante, a outra margem, o outro lado da ponte 25 de abril, onde surgiram bairros criados por migrantes oriundos maioritariamente do continente africano. Os estereótipos e o imaginário que povoam esta peça não nos surpreendem, pois são dramaticamente retratados nos telejornais e jornais quando há rusgas ou problemas com as autoridades. Na sala da Rua das Gaivotas 6 ganham corpo através dxs performers que conseguem subtrair o sensacionalismo dos meios de comunicação e parecem tornar mais reais as situações ficcionadas no palco.

O espaço desenhado no chão delimita os movimentos das personagens que nunca saem das linhas demarcadas (apenas a figura do juiz está fora), enclausurando simbolicamente as vidas narradas. De facto, Duas peças de Xadrez tem uma forte componente simbólica na sua encenação, no uso do espaço cenográfico e nos movimentos, com os quais se transmite uma sensação de limite e de falta de saídas.

A narrativa acaba por se centrar principalmente numa das personagens, que, curiosamente, não tem voz própria. A sua história é contada pelos outros, especialmente pela irmã, que, embora tenha voz, não parece ter história, ou melhor, esta está totalmente ao serviço da do irmão. Ela personifica a mulher cuidadora, a que aguarda, a que vive através dos outros. Nesse sentido, é uma personagem bastante estereotipada e plana, que beneficiaria de um tratamento dramatúrgico mais complexo, o que fortaleceria a proposta.

As histórias aqui narradas conduzem-nos à prisão, a um sistema judicial lento e desajustado, a problemas mentais e dificuldades no acesso a cuidados de saúde de qualidade. Embora convencional na abordagem narrativa, a encenação procurou dar fluidez aos corpos em palco, dando particular atenção ao movimento destes e à sua relação (ou falta dela) no espaço delimitado. Deste modo conseguiu-se um interessante contraste entre o texto/história e a sua representação.

As fitas que delimitam o chão do palco parecem também demarcar as vidas que ficaram presas (ao bairro, aos estereótipos raciais, à delinquência, à prisão). A encenação joga com esses limites criando, contudo, movimentos fluidos e trazendo para o espaço sonoridades familiares e estranhas. O uso do português, do crioulo da Guiné-Bissau e o mandjako atribuem maior musicalidade e realismo aos diálogos e às narrativas. São outras sonoridades que nos separam, mas que nos aproximam a realidades não muito distantes, na outra margem, e às quais a voz pesada de Allen Hallowen contribui para criar pontes.

 

Abram-me a porta eu porto-me bem Alguém gritava, ninguém ouviu
Havia trovoada, estávamos em Abril
Até o seu maior rival chorou quando ele saiu O Rei da Ala tornara-se um velho louco e senil
Allen Halloween, O Rei da Ala, in Unplugueto, 2019

 

São precisas mais vozes como a do Joãozinho da Costa, que mistura com naturalidade o português, o mandjako e o crioulo da Guiné-Bissau em espaços como a Rua das Gaivotas 6 e trazem para o palco a sua voz e a sua geografia. São precisas mais performers como a Ralaisa Embaló e o Luis Mucauro para que possamos ouvir sotaques, conhecer movimentos e ver corpos que dão vida a personagens que enriqueçam um espaço que se quer inclusivo e aberto a todas as vozes e a todos os corpos. São precisas mais histórias contadas a partir de realidades diversas, que nos ajudem a complexificar o nosso olhar e nos tirem do que Chimamanda Ngozi Adichie denominou como “o perigo da história única”. Ainda bem que o espetáculo Duas peças de Xadrez foi apresentado na Rua das Gaivotas 6.

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