por Telma João Santos
Um corpo de trabalho que se anuncia através de quatro mediums diferentes a partir de um mesmo espaço físico: fotografia, performance online, leitura durante cerca de 7 horas à janela e performance presencial. Um texto em quatro mediums diferentes como proposta de leitura, convergência, interpelação: #descrever, #espanto, #formular, #landscape. Isto é claramente um ato falhado, o desejo de fazer surgir, a partir do confronto, uma recontextualização do universo de aparente esbatimento imagético. É, no entanto, uma tentativa de aceder às várias camadas que participam no trabalho de Silvana Ivaldi.
#descrever
Artista pensamento-ação, que se posiciona na procura, pesquisa e criação de paisagens-coleção de percursos construídos a partir de uma relação entre o desejo e um trabalho minucioso de tessitura. E se a empatia fosse parte do inferno que a solidão também permeia? E se o Inferno, na Divina Comédia (Dante Alighieri), integrasse uma paisagem interseccional, onde tradução, autobiografia e corpo participam nas suas várias dimensões, contradições e perspetivas? E se várias camadas de um olhar autoral sobre a criação artística e os dispositivos através dos quais ela existe fossem sublimadas no que têm de impossibilidade conceptual aparente? E se se construir um universo particular de forma meticulosa para o destruir assim que se é bem-sucedida? E se a construção não for sobre a emoção da relação com os materiais, mas sim sobre a construção de matéria artística sobre os mesmos, questionando-os nas suas hierarquias e afunilamentos? Estas foram algumas questões que me foram surgindo à medida que fui assistindo aos vários objetos que se foram apresentando e sendo partilhados. Apresentou-se no primeiro dia uma fotografia cujas camadas propõem um esbatimento do “real”; no segundo dia uma performance online, em que passei 50 minutos a construir expectativas em torno de acões específicas que culminavam no seu desaparecimento; no terceiro dia, a tarefa hercúlea de ler todos os cantos do Inferno, de Dante, em italiano arcaico à janela, em que assisti apenas ao final – cheguei a meio do penúltimo canto – e que é a primeira vez que o público acede à presença física de Silvana, com uma distância e em níveis de altitude diferentes; no quarto e último dia, a performance presencial, numa sucessão de situações de problemáticas de tradução em diferentes contextos relacionais: materiais, imagéticos, linguísticos, físicos.
#espanto
#1 – Ela passou na minha timeline. Eu sabia que ela ia aparecer, sabia a data, sabia qual a proposta. No entanto, ela passou por mim e cumpriu o seu desígnio: eu só me apercebi depois de ser republicada, partilhada. Eu não dei conta, eu falhei. Eu falhei como era suposto eu falhar. Eu falhei, porque estou dentro de uma estrutura carregada de imagens, onde a perceção deixou de ativar camadas, e passou a ativar cores e movimento e nitidez. Eu deixei de ver. Eu deixei de ver o que está por vir, de ver o que já veio e voltou a estar por vir, porque eu não consegui ver. Uma imagem esbatida de cadeiras desencontradas, uma foto em direção ao seu desaparecimento em camadas. 360º a duas dimensões.
#2 – Espero a hora. A imagem surgiu antes do tempo, penso. Fico aflita. Afinal talvez não. Ah ela está ali e faz parte. Ok, agora percebo. Sigo. Ela começa. Ou será que já começou? Quando é o início? Percebo a construção, sigo com cuidado todos os movimentos. Aprendo ao longo da performance a gerir o desejo de que qualquer imagem que identifico como finalização de uma construção permaneça o tempo suficiente para que eu possa acalmar a ansiedade da espera. Não quero que o desejo se cumpra e espero o tempo todo que ele aconteça. Cada uma das construções um universo de possibilidades. Eu. Tu. O Mundo.
#3 – Eu já sabia qual a proposta. A endurance. A possibilidade de endurance. A liberdade de não ser, não fazer, resistir, aceitar e decidir não o fazer. A proposta de endurance das 10h às 17h, as regras auto-impostas – no máximo 1 minuto parada, não saio deste sítio, alguém me trará chá, sopa e algo que sirva como sanita – a vontade de cumprir-se, self-determination, self-commitment. A performance. A performance. Encontrei-a. O encontro. A performance.
#4 – Uma estátua. O escadote. Pizza. Berbequim. Cabeças de esferovite. Balões. Branco. Glitter fingido. O tio. O parente. O Dante. Que Dante? A pipa. A pipa. A maravilhosa pipa. A falha, o sexo, a cara dele, o tronco dele, a ascensão. Alberto Pimenta. Multi. Tudo Multi. Muito Multi. As pessoas ficam atordoadas: assume a transição como paragem – ah que ofensa para a dança! – assume a construção em direção ao esbatimento – ah que ofensa para o teatro! – assume que corpo e texto e corpo e texto e estátua e escadote e berbequim e pizza e água são parte de uma estratégia que nunca se perde, que nunca se torna visceral – ah que ofensa para uma certa ideia de performance! E eis que ela surge como autoral. Única.
#formular
Neste trabalho encontramos três conceitos fundamentais: tradução, convergência e pós-pós-cartesianismo. A problemática da tradução tem sido abordada por muitos autores em diversos contextos, da tradução literal, à tradução de conceitos ou propostas através de meios audiovisuais diferentes – a ideia de remediation, introduzida por J.D. Bolter & R. Grusin[1], às problemáticas de tradução entre disciplinas[2]. O que é fotografar o espaço em 360º e dá-lo a ver em 2 dimensões? O que é uma performance online e como questionar o medium? Como propor uma leitura em italiano arcaico numa janela para uma rua movimentada de Lisboa? O que significa dar a ver uma performance que é uma costura de um universo enorme de referências, sem correr o risco de misunderstandings e onde a tradução enquanto problemática “real” se apresenta como central?
Observado por João Estevens no Interfluências (conversa entre artistas, pensadores, fazedores, curadores e demais) relativo a DOLCE STILL NUOVO, e que gostaria de salientar também, este projeto é também ele uma proposta de aproximação ou convergência do corpo de Silvana até nós, público: começa com uma fotografia, onde o corpo não está presente, em seguida uma performance online onde o corpo se apresenta virtualmente, depois a performance à janela, onde acedemos a uma parte do seu corpo ao vivo, mas com distância enorme e, finalmente, a performance presencial, com o seu corpo próximo do nosso, dentro das regras de distanciamento associadas à pandemia presente. No entanto, é uma quase convergência se olharmos para as várias camadas conceptuais multidimensionais. É de notar a importância de referir que há um lugar de presença constante de um corpo que se anuncia apenas através da sua ausência na fotografia, e em seguida através da parte superior, o seu busto, e que na performance presencial, esse corpo já presente destrói a ideia de busto masculino: a estátua cujo busto é fodido e de alguma forma mutilado, o tio cuja presença do busto é decidida por ela, os bustos de esferovite mutilados, os balões furados para que não se tornem bustos. A destruição de um pensamento cartesiano, a destruição da elevação desse pensamento que eleva a mente, o busto, o conhecimento, e torna o corpo pecado, foda, dissidência[3]. E é na dissidência desse corpo que se constrói pensamento ação, o busto questionado, o busto simbólico transformado em corpo, o sexo na cara, a pizza na estátua, o amor que se constrói a partir de bustos deitados, apagados, transformados.
#landscape
Turbulência, Real, Medium, Desejo, Dante, Convergência, Presença, Quase-Continuidade, Virtual, Busto, Tradução, Turbulência, Esbatimento, Autobiografia.
Triângulos, Quadrados, Retângulos, Outros Polígonos, Caminho, Passadeira, Espelho, Desenho, Conspurcação, Avaria, Afunilamento, Desmembramento, Cabeças, Balões, Berbequim, Agulha, Olhar, Movimento, Palavra.
Criei um desenho: tinha parênteses-chaves, retângulos, triângulos, quadrados, linhas, cruzamentos, pontos de descontinuidade e muitos conceitos. Tudo muito organizado e arrumado entre si, estabelecendo em seguida um caminho, vermelho, curvo, turvo e já menos delineado. Descrevo-o, utilizo as suas palavras para que se possa transformar noutro. Pode sempre ser outro, o dispositivo como ficção, como construção de uma possibilidade real imagética. Como transformar esse desenho? Transformo-o descrevendo-o, transformo-o destruindo-o, transformo-o fragilizando o seu mecanismo. A fragilidade da construção como manifesto de força na criação artística. Esta fragilidade, que se vulnerabiliza em lugares de pesquisa, onde uma tessitura fina, virtuosa, complexa, se vai delineando e transformando em paisagem multidimensional. Este projeto constitui um manifesto de amor.
[1] Bolter, J. D., & Grusin, R. A. (1999). Remediation: Understanding new media. Cambridge, Mass: MIT Press.
[2] Santos, Telma João. (2014). On turbulence: in between mathematics and performance, Performance Research, Vol 19, Issue 5, pp 7-12.
[3] Altintzoglou, Euripides (2018). Portraiture and Critical Reflections on Being, New York: Routledge.