por TELMA JOÃO SANTOS
Em Portugal, à excepção de um número reduzido de pessoas a quem é atribuído todo o lugar de fala por inerência a um nome de família, uma afinidade íntima e/ou pessoal ou uma soberba na auto-inscrição em círculos específicos, a expressão de si é quase inexistente; ou como José Gil descreve em “Portugal hoje, o medo de existir” (2007),Vê-se que o espaço público falta cruelmente em Portugal. Quando há diálogo, nunca ou raramente ultrapassa as «opiniões» dos dois sujeitos bem personalizados (cara, nome, estatuto social) que se criticam mutuamente através das crónicas nos jornais respectivos (ou no mesmo jornal). O «debate» é necessariamente «fulanizado», o que significa que a personalidade social dos interlocutores entra como uma mais-valia de sentido e de verdade no seu discurso. É uma espécie de argumento de autoridade invisível que pesa na discussão: se é X que o diz, com a sua inteligência, a sua cultura, o seu prestígio (de economista, de sociólogo, de catedrático, etc.), então as suas palavras enchem-se de uma força que não teriam se tivessem sido escritas por um x qualquer, desconhecido de todos. Mais: a condição de legitimação de um discurso é a sua passagem pelo plano do prestígio mediático – que, longe de dissolver o sujeito, o reforça e o enquista numa imagem «em carne e osso», subjectivando-o como o melhor, o mais competente, o que realmente merece estar no palco do mundo. (p. 28-29)O primeiro Interfluências transforma-se assim num marco: criar espaço de encontro, debate, fofura, crispação, amor, pensamento, onde os artistas generosamente permitem que um conjunto de pessoas aborde, questione, construa discurso académico, artístico, de expressão autobiográfica, a partir das suas criações artísticas. Não conhecia o trabalho de André de Campos como criador, apenas como intérprete nas peças de Olga Roriz. A oportunidade de conhecer um artista a partir da sua obra e poder questionar sem imposição temática o seu trabalho foi para mim um privilégio – a liberdade de me aproximar, questionar, abordar e principalmente perceber que há uma comunidade de jovens artistas, neste caso já com algumas criações em nome próprio, que continua à espera de ver os seus trabalhos inscritos no mapeamento da criação artística em Portugal que, fora do entretenimento ou mainstream ou alternativo financiado, está quase todo por fazer.
Tive uma primeira conversa com o André sobre o contexto da sua peça, UNDERDOG, a respectiva ideia-conceito, ou Imagem Axiomática1, as várias imagens tridimensionais, ou Sub-Imagens, e as linguagens usadas na Dinâmica gerada em cada Sub-Imagem e na transição das mesmas. Questionámos o establishment português nas artes performativas, como podemos encontrar formas de estar juntos, de construir novas abordagens a partir da criação de coletivos de resistentes na emergência dos assuntos que propõem, na pertinência destes como forma de luta pela dignidade da condição dos artistas em Portugal, em especial os que desenvolvem trabalho em torno de temas mais marginais.A primeira questão que surgiu, antes de tudo, foi o nome da peça – UNDERDOG. André de Campos é assumido e percepcionado como homem, branco, cisgénero, heterossexual e dança habitualmente para uma das coreógrafas portuguesas mais reconhecidas. Neste sentido, fiquei curiosa para saber em que medida é que André de Campos se entendia um underdog no contexto da criação artística em Portugal. Por outro lado, queria saber como era possível encontrar forma de gerir o seu lugar como intérprete num contexto mais formal com o seu lugar como criador num contexto de temáticas mais marginais e emergentes. Somos todos underdogs em Portugal, disse-me ele, à excepção das poucas excepções conhecidas. A conversa foi bastante empática, encontrei no André um criador muito próximo daqueles com quem trabalho, em termos geracionais mas também artísticos, onde uma preocupação com formas de atuar ou pactuar menos normativas, gerando material a partir de opostos como orgânico/inorgânico, arte/entretenimento, distância/intimidade, mas também produzindo discurso sobre como produzir material e criar peças numa precariedade quase total. A conversa foi no dia do ensaio geral e só vi a peça na estreia, no dia seguinte.Com as caras tapadas, em ambiente underground de desporto de luta, viajei logo para trabalhos desenvolvidos em torno de noções de resistência, esforço e luta a partir de um imaginário muito concreto e embodied dessa mesma ideia (Franko B2, Cláudia Dias3, Cassils4 – apesar de não ser boxe, o trabalho de Cassils assenta em performances de grande esforço físico, em luta e resistência). No entanto, em UNDERDOG todas as lutas possíveis já aconteceram, é o pós-festa no início. Depois de um ritual em torno de um “ringue” imaginário e de uma luta por vir, vejo-lhe a cara. Pintada de branco. Outra questão: porquê a white face? Na dança, a white face ainda hoje é frequentemente usada por criadores portugueses, em várias direções (máscara de desumanização, ancestralidades ritualísticas, símbolo de pertença). Qual o contexto aqui? Será que a white face pode ser vista como uma problemática, tendo em conta que a peça foi apresentada numa blackbox, construída para destacar a presença e movimentação dos atores, brancos? Não procurei através destas questões qualquer resposta concreta, mas promover o debate em torno da importância de que elas estejam presentes e inscritas.Retirando a luz da lanterna, a escuridão, o contexto, podia ser uma peça em torno de análise de movimento. Há um trabalho de pesquisa de movimento sobre a desconstrução de articulações em torno de movimentos de animais como insectos ou cães, sobre a respiração, que acho importante referir. A pesquisa pode, no entanto, ser aprofundada, des-hirarquizando o corpo, libertando mais os membros inferiores, gerando conexão do corpo inteiro na inspiração animal de estar under the surface.
Esta peça tem dois intérpretes: um bailarino e um ator. O texto, de Bruno Alexandre, muito interessante e atual, recebi como um manifesto do artista (precário) atual, mas com o qual tive uma relação estranha no contexto da peça, no sentido em que eram dois ambientes diferentes que poderiam ter sido encarados como tal e dar ao público a possibilidade de formar possibilidades relacionais. No entanto, havia uma tentativa de provocar uma relação direta entre o texto e o corpo que me fez desejar fricções e provocações, onde a apropriação e desconstrução do texto se faria em paralelo com o corpo, para que se des-hirarquize também o lugar de cada um deles.Surge neste momento uma questão que penso ser importante na caracterização do trabalho de André de Campos, bem como num possível olhar sobre a forma como as novas gerações encaram a noção de underdog: continua a existir uma hierarquia enorme; ou seja, não há escapatória a uma noção estruturalmente hierárquica do mundo. UNDERDOG é, desde o início, sobre um corpo que se quer libertar do discurso, mas nunca o faz: ele está fora – neste caso, abaixo, o que também é problemático pois pressupõe uma hierarquia que nunca desmonta como possibilidade – ou dentro do sistema? É sobre estar fora e querer esse “fora” reconhecido ou é sobre o não reconhecimento e querer estar no sistema? Dentro do fora, existe um outro dentro que se hierarquiza. Este é, para mim, o cerne do seu trabalho e penso ser pertinente continuar esta pesquisa, permitindo transformar esta peça numa de duração superior e/ou pensar na criação de um coletivo de underdogs.
Notas de Rodapé
1 Ver (Santos; 2014, 2017, 2019)
2 Franko B: http://franko-b.com/milk_and_blood.html
3 Cláudia Dias: https://www.youtube.com/watch?v=FpdHMFlvPyM 4 Cassils: https://www.cassils.net/
Referências
José Gil. 2007. Portugal hoje, o medo de existir. Lisboa: Relógio d’Água.
Telma João Santos. 2014. On a Multiplicity: deconstructing Cartesian dualism using mathematical tools in Performance. Liminalities: A Journal of Performance Studies, Vol. 10, no. 3, 1-28.
Telma João Santos. 2017. On Self Codes, a case study within mathematics and performance art. Journal of Science and Technology of the Arts, Vol 9, no. 1, 29-37.
Telma João Santos. 2019. Mathematics and Performance Art: First Steps on an Open Road, Leonardo, Vol. 52, no. 5, 461-467.