por TELMA JOÃO SANTOS
A condição de espectador ativo é muitas vezes ambicionada, pensada, configurada, mas de forma a que seja claro o nível de interferência da sua presença. A utilização do público como elemento de possível turbulência e sem controlo total de possíveis caracteriza “Dança Sem Vergonha”, onde o coletivo é um conjunto de individuais. Ou como Rancière afirma,
The collective power shared by spectators does not stem from the fact that they are members of a collective body or from some specific form of interactivity. It is the power each of them has to translate what she perceives in her own way, to link it to the unique intellectual adventure that makes her similar to all the rest in as much as this adventure is not like any other. (Rancière, 2009, pp.16-17)
“Dança Sem Vergonha” é uma dança feita de várias danças, uma cenografia com vários espaços propostos meticulosamente pensados, é uma performance onde elementos cinematográficos, teatrais, tradicionais, contemporâneos estão presentes e onde o espetador é interveniente na medida em que, não participando, partilha o mesmo espaço aberto e sem regras de distanciamento ou proximidade com qualquer dos elementos da peça. Ou como Peggy Phelan escreve, “for the spectator, the performance spectacle is itself a projection of the scenario in which her own desire takes place.” (1993, pp. 152).
Existem três aspectos que considero importante referir no trabalho de David Marques, que se transforma cada vez mais num trabalho híbrido, autoral e múltiplo: 1) a presença explícita da documentação, ou que chamo corpo-memória, e implícita na forma como se percepciona a presença de produção de pensamento e reflexão; 2) o facto de ser um solo – dueto, pela relação estabelecida com Joe Delon, DJ, oscilando entre formas mais explícitas e formas relacionais implícitas; 3) o corpo sensorial em tempo real, ou a relação do corpo com o espaço, a música e o público, em tempo real, tendo em conta o posicionamento livre deste com o espaço.
Um ecrã de tv com imagens de David na sua casa, a habitá-la, por entre divisões, momentos do dia ao longo de vários dias está localizado no centro do palco/sala. No Interfluências, David explica-me que é a edição a partir das imagens de uma câmara colocada na sua casa 24h por dia durante uma semana. A documentação como material de pesquisa, como ferramenta de criação, como objeto artístico, um corpo-memória performativo, um lugar de co-presença entre os vários intervenientes, a autobiografia como ferramenta, e que está presente no corpo de trabalho de David Marques.
Autobiographical performance or performances of the ‘self’ are extremely well placed, then, to mark – or remark – the multiple, non-unitary constitution of the self, and the notion that the ‘self’, rather than being immutable, fixed, given, deep, essential – or whatever other adjective is usually tied to it – is in fact always a performance of a self (or selves). This is the self as a performative construct, with that very performativity revealed in autobiographical performances that perform the self. This is the performance of performativity. (Heddon, 2002, para. 4)
A coreografia das mãos de Joe, que nos transporta para um lugar etéreo e simultaneamente disruptivo das expectativas, a criação em co-existência, a música gravada e em tempo real, a performatividade das escolhas em tempo real, a gestão dessas escolhas considerando a cenografia e o público como intervenientes, um deles fixo ou controlável – a cenografia – e outro com alguns limites mas não totalmente controlável – o público, transformam esta peça numa peça multidimensional na construção de discurso por entre opostos: real versus virtual, memória virtual versus presença sensorial, meticulosamente pensado versus construído em tempo real. A construção de uma paisagem que é também desterritorialização do corpo em relação ao estruturalmente estabelecido, leva-nos ao que André Lepecki e Sally Banes (2007) chamam de performative power of the senses: “as the senses shift in relation to social and cultural changes, what they also change are the political conditions of possibility for entities, substancies, bodies, and elements to come into a being-apparent. It is in this light that we can talk not only of a performance of the senses but also of a performative power of the senses.” (p. 2)
Nota Pessoal
Escrevi pela primeira vez no Disseminário sobre o primeiro espetáculo que aconteceu na Rua das Gaivotas6 em 2020. Escrevo agora pela segunda vez para aquele que foi o último espetáculo que aconteceu na Rua das Gaivotas6 antes de fechar portas devido ao surto de coronavírus – uns dias depois Portugal entrou em estado de emergência, como muitos outros países. Dança Sem Vergonha transformou-se, assim, para mim, num ato político, transgressor, sobre um lugar de encontro que se desmoronou, se tornou impensável, e também ilegal.
É de referir a importância de reflexão futura sobre o que fazer a partir daqui com o corpo sensorial, próximo, presente, e com a importância da intimidade e da proximidade relacional com o público nas artes performativas, tendo em conta a atualidade da criação em dança em torno da partilha de material experiencial e biográfico, do corpo em movimento como ferramenta mais central (pós-conceptual), da humanidade de um corpo-máquina, da possibilidade de conexões com novas abordagens sobre o corpo, da multiplicidade identitária.
As artes performativas em contexto virtual são parte do contexto de criação artística atual. No entanto, e ao contrário do que se pensou inicialmente, uma grande parte devido ao medo da tecnologia – que esta iria substituir o “real” (Bolter and Grusin, 2000), percebemos agora, ao vermo-nos obrigados ao virtual como única possibilidade de partilha performativa, de que a escolha, bem como a co-existência são fundamentais, enquanto seres múltiplos e intersubjectivos na forma como nos relacionamos com o mundo. Tudo o resto é saudosismo e medo.
Referências
Banes, Sally; Lepecki, André. The Senses in Performance. New York: Routledge, 2007
Bolter, Jay David; Grusin, Richard. Remediation-Understanding New Media. Cambridge: The MIT Press. 2000.
Phelan, Peggy. Unmarked – the Politics of Performance. London and New York: Routledge, 1993.
Rancière, Jacques. The Emancipated Spectator. London and New York: Verso, 2009.
Stern, Daniel N. The Present Moment in Psychotherapy and Everyday Life. New York: W. W. Northon & Company Inc., 2004.