ÀS GAIVOTAS, AOS CÃES E AOS PRÓXIMOS ANIMAIS ⬤ Tânia Geiroto Marcelino

ÀS GAIVOTAS, AOS CÃES E AOS PRÓXIMOS ANIMAIS ⬤ Tânia Geiroto Marcelino
Gaivotas Em Terra

por RITA ANUAR

 

É sobre o encontro com a língua estrangeira das coisas; a forma das coisas; a relação (íntima) com as coisas; o repouso e a aproximação às coisas: essas coisas forasteiras e estranhas.
Às gaivotas, aos cães e aos próximos animais é uma exposição em que a Tânia convida cada um a partilhar do espaço das coisas, a habitar temporariamente com elas.

 

Ainda que no confronto com uma aura de pendor fragmentário – uma espécie de desalojamento de algum lugar – do qual não sabemos a morada – os objectos são mostrados sob a premissa do interesse na particularidade e singularidade de cada um. As coisas, neste entendimento, não são um mero fragmento de algo que era um outro, elas assumem-se enquanto coisas firmadas por si mesmas.

 

Todas as coisas são válidas – esta é uma premissa que poderia acompanhar o trabalho ou as experiências da Tânia com as coisas – testar se os objectos aos quais se aproxima têm ou não um lugar a considerar naqueles que são os problemas que ocupam a escultura, a pintura e o desenho, ou ainda, o questionamento em torno das limitações dos objectos – a sua existência no terreno da presença ou da ausência. O questionamento em torno do que falta a determinado objecto para ser visto, examinado. Se é que algo falta.

 

 

A vida das Coisas

Sobre a prática e os objectos de Tânia Geiroto Marcelino

 

A quem se comunica o candeeiro? E a montanh? E a raposa[1]

Fui ao ateliêr da Tânia no outro dia, na Rua Damasceno Monteiro, a uns minutos da Almirante Reis. Combinámos encontrar-nos de modo a concretizar algo que já havia sido falado em várias ocasiões, o desejo de colaborarmos juntas em alguma coisa que reunisse o interesse de ambas no campo da arte contemporânea.

 

A minha visita tinha o propósito de conhecer o trabalho da Tânia, que até à data apenas tinha tido contacto através de imagens. Não havia um plano delineado, a ideia era conversarmos, em particular, sobre a exposição na Rua das Gaivotas 6 – Às gaivotas, aos cães e aos próximos animais -, e os objectos que a Tânia aí ia mostrar.

 

A Tânia mostrou-me os objectos que estava a pensar expôr, e por de entre as histórias, os objectos e a partilha daquilo que está em causa no seu fazer artístico, contou-me a história do prato partido que um amigo lhe ofereceu. Notei que ela usou o verbo “consertar” para se referir ao prato que então me mostrava. Aquilo chamou-me a atenção porque na altura o que ela me mostrava tratava-se – ainda de um prato partido. Era um prato partido que noutro tempo ela desejou consertar. A Tânia falou-me de como procurou saber sobre uma técnica que antigamente era usada para unir os pedaços de pratos partidos dando-lhes conserto. Como lhe contou a avó, tudo se resumia à utilização de “gatos” – pequenos ferros usados para unir os pedaços dos pratos partidos. Furando as extremidades partidas, os pratos voltavam a unir-se discretamente.
Há qualquer coisa sobre os gestos e as palavras. O conserto dos pratos nunca se efectivou com recurso ao gesto inscrito na tradição. O tempo enterra as palavras e ela nunca soube mais nada sobre a técnica de consertar pratos que usava gatos. As duas metades do prato partido, uma pousada sobre a outra, apresentam hoje um prato desconcertadamente consertado. “Um dia peguei nele e reparei que as duas metades estavam coladas. Mas não me lembro de as ter colado”.

 

Fiquei a pensar nestas palavras porque me pareceu que esta ideia sugere um dos caminhos da sensibilidade própria do trabalho da Tânia – as coisas, ou os objectos, vencem a própria artista. Os objectos são considerados de um modo que supera aquilo que a própria artista pode querer deles.

 

No trabalho da Tânia, os objectos são tratados de acordo com uma espécie de respeito pela sua particularidade e linguagem própria. Essa linguagem, que é a das coisas, é aquela com a qual podemos habitar – na aproximação ou na distância – na tentativa /ou na falha/ de uma tradução possível do que quer que seja e que é próprio das coisas. Os objectos possuem uma voz e falam uma língua própria. Essa voz dos objectos está no trabalho da Tânia. A voz das coisas fala alto e às vezes faz eco. Mas também há outras coisas, as que falam baixo, quase no silêncio. Algumas chegam até a falar sozinhas. Às vezes até parece que têm uma vida só sua.

 

Encontros com coisas

 

É na relação com aquilo que é dado – no acaso do mundo e da vivência – que repousa o gesto intraduzível da artista.
Este gesto corresponde a um habitar lugares onde involuntária, ou voluntariamente, as coisas despertam e se colocam na linha da frente da sua sensibilidade. A Tânia está atenta ao acordar das coisas porque elas habitam uma linha no tempo e no espaço, mas a sua vida de coisas próprias fá-las mover, e nesse intervalo de tempo e de movimento das coisas tudo pode vir a ser outra coisa.

 

A importância do tempo no trabalho da Tânia é um sintoma da sensibilidade em causa na relação que a artista estabelece com as coisas. O modo de afirmar o corpo dos objectos atende a um tempo que é da ordem do não- previsto.

 

No que respeita ao processo, as coisas que se apresentam em Às gaivotas, aos cães e aos próximos animais poderão sofrer ainda intervenções que desterritorializam a pretensão de fixar em determinado tempo o objecto final. Esta é uma premissa possível da relação que a Tânia estabelece com as coisas. Uma das peças apresentada na exposição contém esse índex temporal. A madeira com vestígios de tinta azul é uma coisa que subverte a ideia de coisa terminada. Há nesta peça a convocação de uma continuidade no tempo que rompe com a ideia de um fim. Podia ser segredo. O azul que vemos é resultado de um gesto da artista – o depósito da água que utiliza para tirar a tinta dos pincéis na concavidade que a madeira apresenta. Há uma relação demorada entre o tempo e as coisas. O tempo é tido em consideração no seu ímpeto transformador, quer por intervenção da artista, quer pela sua passagem, o tempo enquanto coisa que age nas coisas.

 

“O passado traz consigo um índex secreto”[2]. Quando essa sensibilidade entra na esfera das coisas, é como se os objectos falassem uns com os outros mas cada um num tempo diferente. Aquilo que em determinado tempo foi visto de uma coisa, pode ser o eco que desperta uma outra – e todas as coisas são susceptíveis de se acordar umas às outras no trabalho da Tânia. Cartão + embrulho / no pretérito = Carvão + fio de sapateiro / Y

 

Nada a resgatar – coisas são coisas

 

Em relação ao trabalho da Tânia o termo resgate parece algo redutor. Não falamos de um resgate dos objectos, inseridos a posteriori no espaço expositivo, à semelhança daquela que é uma das questões implicadas no gesto do ready-made.

 

Na realidade, os objectos apresentados pela Tânia não são fruto de um resgate, não necessitam nem dependem dessa atitude uma vez que eles próprios têm uma vida sua, diria até que uma vida quase independente da vida da artista e que ela acolhe nessa liberdade, essa vida dos objectos que se afirma a ela, e a nós.

 

O modo da Tânia considerar os objectos é aquele que não se coloca na esteira de uma relação orientada verticalmente. Recorrendo ao termo técnico usado no cinema, não se trata da perspectiva de um plano picado – o olhar de cima para baixo. Nesse sistema hierarquizado, o artista é dono dos objectos. Há no trabalho da Tânia uma relação horizontal com os objectos da qual surge a consideração dos mesmos enquanto corpos respeitados no que são, integrando também a abertura para aquilo que podem vir a ser.

 

Ao nível formal isto surge na consideração da configuração original das coisas – alguns objectos são apresentados tal como são encontrados – assumindo a aproximação da artista às coisas tal como elas são. Moeda. Pintura. Também há coisas intervencionadas, no acordo entre objecto e intuição – mas não tem de existir um conceito. Madeira + fita cola. É dessa impossibilidade da própria linguagem, a impossibilidade de ser capaz de traduzir o que respeita ao estrangeiro das coisas, que os objectos se impõem na expressão – como coisas que são.

 

Em alguns destes objectos não falamos do conceito seminal das coisas – aquilo que a linguagem nomeia e que o humano na expressão da língua valida no acto de comunicar. Cadeira. Falamos de uma outra coisa.
À rigidez dos conceitos colocam-se novas hipóteses de configuração para o objecto que tocam as questões da linguagem e da nomeação e que cruzam essas questões com a forma.

O objecto nasce desse lugar não fixado do conceito e assume-se como forma que não encontra casa no consolo da linguagem. As formas são entregues a si mesmas e àquilo que a sua linguagem própria pode dizer.
As formas, as coisas, a palavra. Os objectos.

 

 

[1]Sobre a Linguagem em Geral”, Walter Benjamin, em Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, trad. Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto, pref. de T. W. Adorno, Lisboa: Relógio D’Água, 1992, p. 181

[2]Sobre o Conceito da História”, Walter Benjamin, em O Anjo da História, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 9-10

 

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