por Filipe Baptista
*[para melhor leitura e visualização das imagens recomenda-se o download do pdf]
Artista de ofícios plurais e nome proeminente das artes visuais e da performance em Portugal, António Olaio apresenta com o projecto musical Anywhere Else a sua estreia a solo enquanto músico e cantautor, primeiro num formato discográfico, editado e lançado em 2020 pela Lux Records, e agora, em Maio de 2021, no formato de um concerto-performance.
Um concerto musical sendo inerentemente um ato performativo, ganha aqui um interesse e curiosidade redobrada por se tratar de Olaio. Remetemo-nos para o início dos anos 80 e António tem, desde esta altura, a arte da performance como a força motriz do seu trabalho, tendo desde então criado um vasto corpo de obras que não se sustentam unicamente numa série de acontecimentos performativos, mas que, aliás, sempre se expandiu e desdobrou noutros media, como a pintura, as artes plásticas, a fotografia, o vídeo e a música. Podemos olhar para o seu trabalho como uma constante ode à performance, seja enaltecendo as paisagens performativas evocadas pelas suas pinturas e demais criações visuais, seja dos momentos performativos e de instalação que advêm das ideias conjuradas no atelier ou num estúdio.
Quando entrei na sala principal da Rua das Gaivotas 6 deparei-me de imediato com a presença discreta de António, corpo inerte, vestido de fato escuro, a ocupar o centro da sala quase encostado à parede de fundo de cena, marcando uma longa distância dos corpos que ali entravam e se sentavam para assistir ao concerto- performance.
Acompanhado por uma grande estrutura anelar suspensa no espaço e uma lua laranja projectada sobre o seu lado esquerdo, qual premonição da viagem a ter início nos instantes seguintes, António Olaio agita discretamente o corpo enquanto um ecrã televisivo junto ao chão, à direita de cena e próxima do público, ilumina-se e marca o descolar da viagem audiovisual e inter-dimensional que ali nos traz.
As primeiras imagens que vemos são do videoclip da canção de abertura, Polka Dot Brain, co-criada com o músico londrino Richard Strange. O rosto distante e pouco iluminado presente naquela sala, quase escondido por detrás do microfone, torna-se claramente visível e definido no ecrã.
A voz de António Olaio abre-se e ganha presença na sala, pintando os vocals que sustêm as imagens retroprojectadas no ecrã.
Uma faixa de luz monolítica surge e ilumina o corpo na sala, entre a tonalidade rosa ambiente.
O arranjo musical, entre bateria e riffs de guitarra, e a voz pontuada e soturna das primeiras palavras de António, acarretam consigo uma qualidade idiossincrática que me transporta imediatamente para um lugar diferente, quase íntimo e privado, onde o próprio assume um lugar de questionamento sobre a nossa própria existência e o nosso posicionamento enquanto corpos vivos e pensantes. Ensaia a possibilidade de vivermos com um cérebro sem sinapses, formando, talvez, uma massa coletiva de pequenos pontos que se repetem de forma cirurgicamente idêntica e alinhada.
If I had a polka dot brain, A polka dot life, a polka dot sight What would become of my world? What would become of me? Breath without breathing, life without living What would become of me?
De corpos alienados e cérebros reinventados, um pequeno companheiro de asas e penas, que espreitamos no televisor, introduz-nos A Little Bird in a Tree, levando-nos do pace mais dilatado e new wave da primeira faixa, às batidas proeminentes da bateria e à guitarra elétrica sem-vergonha de Vitor Torpedo, que ouvimos ecoar na sala. António, de corpo dançante, desenha no espaço, com os braços, aquilo que me parecem ser breves frases numa xeno-linguagem por inventar, enquanto a sua voz nos relata o passado de um ser supratemporal, que incarnou as figuras de um profeta messiânico, de um político e de uma rainha, até atingir um estado iluminado de existência num corpo penado que descansa sobre um tronco.
Passamos daqui por An Army of Angels, que pinta a chegada de um exército celeste, com Silvestre Correia a emprestar a voz ao presságio, enquanto uma fanfarra folk lo- fi se faz ouvir contra-posta por declamações do próprio António.
A dimensão ora onírica, ora cómico-trágica das canções que ouviríamos naquela tarde torna-se claramente evidente a partir daqui, ora embalando-nos, ora tirando-nos o chão num ritmo urgente.
Aterramos então num lugar que dilatou o tempo e suspendeu o corpo, quando ouvimos os primeiros acordes da guitarra de Vitor Rua em Next to the Next Century. Enquanto observava no televisor a sequência de planos em movimento daquilo que aparentava ser um casa há muito habitada e esquecida, num lugar distante e remoto, a voz de António Olaio ecoa grave e ténue, refletindo sobre a procura de um novo lugar num novo tempo – num novo século – com a esperança de encontrar aquela reconfortante centelha de luz. Por instantes senti-me como que a flutuar no interior desta sonda que rasgava o tecido físico-temporal e nos permitia observar lugares perdidos e esquecidos, enquanto ouvia esta voz soturna que segredava, como que deixando fragmentos de memória que pudessem, talvez, ser interseccionados. Um pouco como que uns registos lançados na esperança de um dia serem descobertos, interpretados e sentidos por quem os encontrar.
Para mim enquanto espectador-passageiro, o potencial para nos transportar para um novo lugar – não algures por aí, lá fora, mas talvez num sitio qualquer interior conjurado pela nosso lóbulo temporal e pelos estímulos da retina e do ouvido – cristalizou-se aqui em plenitude.
Behind the door
there will be the same wonderful
something else
Rasgo.
Corpo baloiçante. Gestos cuidadosamente hesitantes.
Lord What Can You Do For Me?, instala uma confidência ritmada e pitoresca de um homem que deambula entre a falta de Fé e a loucura.
Sem demora, o ritmo desenfreado dissipa-se e mergulhamos num tecido de drones que instalam uma ambiência quase etérea.
Floating over my own ground Here, where I stand Floating over my own ground I was running around
Here, where I stand
Em Floating Over My Own Ground, a voz de António ecoa ligeiramente distorcia sobre o espaço sonoro (composto por Frederico Nunes e o já mencionado Richard Strange), como se de repente captássemos uma transmissão perdida, fazendo com que os corpos dançantes sentados nas cadeiras subitamente se sintonizassem com aquele confidente, que medita por minutos sobre o seu corpo que aparenta afastar-se cada vez mais do chão que outrora o sustentava.
Nascido em Lubango, Angola, António Olaio faz uso do ponto central deste projecto para discursar sobre o seu continente natal.
Olarias. Ornamentos. Ritmo. Olhar pleno. Tempo.
I lost my soul in Africa I’ll never grow old in Africa What can I say? What can I do? I’ll never be back there
Somos devolvidos a uma melodia de guitarra (desta vez de Paulo Furtado) cujo ritmo nos provoca a levantar da cadeira e dar o corpo ao manifesto pregado.
Dancing my way up to the sky Dancing my way up to the sky Better than being someone from the Earth Is to be someone who has been Someone from the Earth
O intérprete regozija-se no ritmo, dançando entre as palavras.
As I Walk imprime uma sussurrada voz entre um violino e cordas palpitantes (colaboração de Olaio com José Valente e Richard Strange) que encontra um coro de vozes que enaltece a prostração de quem desliza numa espiral descendente.
É no momento seguinte que somos introduzidos a um novo corpo performativo, quando Érika Machado se desloca da plateia para o centro da sala, para interpretar com António a canção My Head Ahead. Numa tonalidade azul, fria, ouvimos a voz suave de Érika em uníssono com a de António, entre um ritmo e percussão de instrumentos orientais.
Esta seria o primeiro de dois momentos em que António abraça outra voz e outra presença física na sala, sucedido pela faixa seguinte Where Did She Go?, que marca a entrada de Susana Chiocca. Corpo deambulante, habita o espaço com uma voz e corpo que oscilam entre a sedução e a provocação. Sobre a batida composta em parceria com Luís Figueiredo, as vozes de António e Susana jogam com o ritmo que se instala e que fez várias cabeças e pés abanarem-se na sala. O crash da música atira-nos um intenso break de bateria, e o novo corpo introduzido naquela sala vagueia com pressa e em confrontação direta com as pessoas ali presentes a assistir. O desenho de luz, até então cúmplice das diferentes paisagens em que parávamos, denunciou aqui uma certa timidez para acompanhar a energia que se instalara, que, embora intensa, senti pedir um mergulho mais destemido na conjectura dos elementos.
Silêncio súbito. Corpo sai.
To The Sea We Go, música composta em parceira com Ana Deus, leva-nos num passeio suave e de cadência contrastante com o momento antecessor. E dali chegamos a Blood Moon.
Com a mesma capacidade de negociação de estímulos, António Olaio introduz-nos aqui um momento que faz o nosso movimento interior desacelerar e o corpo afundar-se na cadeira, ao ouvirmos os primeiros drones e constelação de sons que surgem do escuro (sons estes criados em parceria com o coletivo musical Haarvöl). Dentro da moldura do televisor vemos um belo quadro em movimento que desenha António parcialmente imerso numa piscina, de mala na mão a flutuar e com a já cúmplice lua laranja, irmã ou clone da que flutua naquela sala.
A voz de corpo grave e sem pressa de António leva-nos com ele a mergulhar fundo, dilatando o espaço. Afundamos naquela textura líquida até aterrarmos em God’s Planet.
Noise. Tecido amorfo, nem líquido, nem gasoso. Preto e branco.
The place God goes to rest and be alone No trees, no birds, no grass, no ground, no phone There, out of nothing, He made His throne His thoughts going back and forth Back and forth
António segreda-nos deste lugar fértil, desprovido dos demais artifícios e com a fertilidade de uma tela limpa, onde, naquele mesmo vazio, acontece a divina dança cósmica da criação.
Escuro. Vazio.
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Quando saí da sala senti que foi como que assistir a um cometa que passou pela Rua das Gaivotas, desintegrando, ali no interior do no6, pequenos fragmentos que nos chegaram como que segredos que íamos descobrindo e desbravando, fazendo-nos sonhar por instantes com outro(s) lugar(es) distante(s).
António Olaio, nosso condutor, deixou-nos com letras e canções que vão do questionamento existencial, à comédia e ao sonho.
A sua voz de corpo grave e ora firme ora sussurrante, qual Leonard Cohen from Mars, leva-nos numa viagem inter-dimensional, onde partilhamos paisagens e lugares perdidos, confissões que se viram reflexões, meditando, talvez, sobre um outro plano de existência.
Ficou o eco, lá fora, na rua e algures cá dentro.
O corpo segue e deambula pelas ruas da cidade, cá em baixo ●