por Telma João Santos
Pensar e fazer uma reflexão crítica em artes performativas é sempre um desafio, e este é particularmente desafiante, dada a relação que tenho estabelecido ao longo do tempo com o corpo como dispositivo de apresentação e representação de paisagens discursivas – não necessariamente lineares ou concretas– em torno das questões que intersectam várias camadas de entendimento sobre estruturas e estratégias de poder. Escolhi, inspirada na proposta da Beatriz Garrucho, três lugares que gostaria de destacar, ressalvando que eles se intersectam e são múltiplos, por terem despoletado questões que me parece pertinente transportar para este formato.
#1. MATERIAIS/MATÉRIAS
As várias iconografias propostas nesta peça estabelecem-se através de matérias e materiais reconhecíveis dos universos da performance art, da dança contemporânea e do teatro, que surgem não só referencialmente, mas também como ferramentas discursivas. Refiro aqui, em particular, o uso dos peixes mortos como referência clássica que tem sido problematizada no contexto da criação artística atual, em que se questionam as diversas relações de poder estruturadas em dualidades: ser humano/natureza[1], ser humano/não-humano[2], as relações com o cosmos[3], feminino/masculino[4], normativo/não-normativo, bem como se questiona a construção de uma ideia de branquitude que percorre todo o imaginário eurocentrado e que tem dado origem a criação artística[5] e a produção de pensamento[6] no contexto das artes performativas. A iconografia do peixe morto, muito usado na teoria feminista e presente em trabalhos de performance referindo-se ao corpo como mercadoria, e ao lugar do abjecto, como no clássico “Meat Joy”, de Carolee Schneemann, referindo aqui os textos de Julia Kristeva em torno do que nomeia como “monstruoso feminino”, é muito interessante. No entanto, estas práticas assentam numa perspetiva hierárquica centrada no ser humano, o antropoceno, não interseccionando o porquê da determinação mercantil e o valor da a vida que contempla, sendo esta menos legitimada e validada. Nesse sentido, proponho uma reflexão aprofundada em torno de iconografias que são problemáticas no contexto atual, em que se discute a utilização de animais mortos para entretenimento e que nem são consumidos, questionando não só a integridade do animal enquanto ser vivo, mas também a indústria capitalista onde ele é criado, morto e vendido, propondo um projeto feminista que não é interseccional no sentido de pensar as hierarquias de poder e a relação com a natureza, ou seja, ainda antropocêntrico.
#2. EMBODIED KNOWLEDGE/ENACTION
Nas artes performativas, e em especial nas artes centradas no corpo e na relação com técnicas corporais, torna-se implicitamente claro que o corpo participa no processo de aquisição de conhecimento. Ou seja, o conhecimento inclui o corpo e as relações intersubjectivas estabelecidas com todos os outros elementos participantes no processo, o que chamamos de embodied knowledge[7], e onde enaction[8] se relaciona com aquilo que nas neurociências se nomeia como approach motivation[9] no contexto do estudo sobre inspiração (artística). Neste sentido, interessa-me referir a importância do conceito de embodied por entre as linguagens e as suas práticas e o contexto em que elas se cruzam em potência. Nesta peça, encontrei alguns lugares de fragilidade no embodiement de algumas práticas e decisões sobre a partilha das mesmas em formatos específicos e na apropriação das várias abordagens, especialmente nos seus cruzamentos. Encontram-se algumas referências concretas da performance art e da dança contemporânea que, sendo pertinentes, não foram apropriadas de forma orgânica, permitindo encontrar um lugar de não apropriação, de disembodiement, de não pertença. Também os textos das intérpretes/criadoras, que são essencialmente sobre experiências associadas à violência de género na adolescência, precisam de interseccionalidade.
Como refere J. Turner[10],
Embodiment can be a transitory, temporary, and partial experience or it can necessitate a psychophysical transformation that generates a level of cognitive understanding and bodily knowing derived from intense experience that constitutes embodied knowledge.
Proponho aqui uma reflexão sobre as várias problemáticas de decisão sobre que práticas e em que sentido elas podem ser abordadas de forma crítica e não só expositiva. A presença de muitos materiais e referenciais propõe uma paisagem multidimensional e complexa que contém em si o risco de levar as intérpretes a habitá-la de forma menos embodied, sem apropriação da mesma.
#3. FEMINISMOS PLURAIS E PROBLEMÁTICAS
Pensar o feminino é também pensar de que forma se podem estabelecer reflexões críticas em torno do conceito de “feminino” e de como ele é entendido nas suas várias manifestações, estereótipos e iconografias no contexto da sociedade patriarcal, racista e capitalista em que estamos inseridas. Falar no feminino foi nesta peça falar do male gaze, de como estes corpos são objetificados e se relacionam com isso. No entanto, é importante pensar na forma como podemos pensar e partir de perspetivas interseccionais e trans-centradas. Como refere Erin Wunker[11] , “so one of my responsibilities, as a white, cis-gendered woman, is to learn how to be a traitor to the ‘joys’ of patriarchal culture that I experience, however unconsciously”. Amelia Jones[12] introduz também uma definição muito interessante:
Trans is a prefix designating a movement or connection across, through or beyond the quality it precedes. It also signals change. As such trans is intimately linked to the claims for performativity or performance. Trans connects (a performer and an audience, the present soon to be past act and future histories) and opens the creative arts to embodiment, fluidity, duration, movement and change: transtemporality, transhistory, transgenealogy, transmigratory, transmogrification.
É importante notar que, ainda que estejamos dentro de uma perspetiva centrada em experiências muito pessoais e contextualizadas em universos normativos, podemos pensar a diferença entre corpos presentes como artefactos imagéticos e corporalidades que são evocadas e atravessam os trabalhos sem que isso afete o trabalho sendo, no entanto, evidente uma perspetiva alargada. É importante pensar nutras experiências, noutros géneros, noutras violências e noutros corpos. As várias problemáticas das mamas no sentido da “beleza feminina” são aqui apresentadas de forma normativa, não abrindo outras possibilidades e apresentando as mamas como pertença, bem como as problemáticas do machismo normativo, que torna mais evidente a ausência de outras experiências e de outras identidades e de outros corpos e que contemple a multiplicidade em torno da categoria de mulheridade, como nomeia Djamila Ribeiro.
NOTAS
[1] Refiro aqui, entre muitos outros o espetáculo “O Sujo e o Limpo”, de Vera Mantero.
[2] Refiro Vest and Page, na relação que estabelecem com o conceito de cyborg e, noutra perspetiva, João dos Santos Martins com a peça “Antropoceno”, bem como o seu corpo de trabalho.
[3] Gostaria de referir aqui dois criadores muito interessantes, Vânia Rovisco, Luís Guerra, na relação que estabelecem nas suas práticas com o universo enquanto cosmos.
[4] Destaco aqui todos os trabalhos de Cassils, artista transmasculino que tem desenvolvido um trabalho em torno de várias imagéticas do corpo enquanto campo de batalha.
[5] Refiro aqui os trabalhos inspiradores de Ana Pi e Betty Tchomanga no deslocamento das perspetivas eurocêntricas na dança contemporânea.
[6] Refiro aqui, entre muitas outras autoras, Grada Kilomba e Thuli Gamedze.
[7] Conceito presente no trabalho de Maurice Merleau-Ponty, e desenvolvido por muitos outros. Ver também Embodied Philosophy in Dance, de Einav Katan-Schmid, da palgrave macmillan, 2016.
[8] Conceito introduzido por Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch em The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience. MIT Press: Cambridge, 1991.
[9] Ver Oleynick, Victoria C.; Thrash, Todd M.; LeFew, Michael C.; Moldovan, Emil G.; Kieffaber, Paul D. The scientific study of inspiration in the creative process: challenges and opportunities. Frontiers in Human Neuroscience, vol 8, article 436, 2014. https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2014.00436/full.
[10] Turner, J. The disenchantment of western performance training, and the search for and embodied experience: toward a methodology of the ineffable. In: M. Perry and C.L. Medina, eds. Methodologies of embodiment: Inscribing bodies in qualitative research. Series: Routledge Advances in Research Methods, 15. Routledge: New York, 2015
[11] Wunker, Erin. Notes form a Feminist Killjoy: Essays on everyday Life. Book*hug Press, 2016
[12] Jones, Amelia. Introduction in On Trans/Performance, Performance Research, vol 21, no 5, 1-11, 2016.