por JOÃO ESTEVENS
“Xposição continuada: o objeto enquanto processo”
Esta instalação monta um aparato cuja construção se assemelha a uma gruta, criando um espaço íntimo e seguro face ao exterior, que origina pontos de encontro distintos com os visitantes. Estes encontros não têm guião, duração ou preparação. Acontece o que acontecer no decurso da estadia dxs criadorxs ao longo das três semanas em que ocupam a sua própria instalação. Esta habitação em permanência (5 dias por semana, entre as 14 e as 19 horas) permite que diferentes ações vão acontecendo neste estar em casa. Efetivamente, “Vamos fazendo” é o mote desta criação, que visa a transformação/ experimentação da/na instalação durante este período. A apresentação desta proposta evidencia que xs criadorxs não procuram partir de um tema de relevância social, nem de uma linguagem artística, para enquadrar o seu trabalho, sobressaindo a questão formal. Há muito que os trabalhos artísticos incorporam a reflexão sobre o seu processo criativo no próprio objeto. Porém, esta continua a não ser uma prática preponderante no contexto das artes plásticas e das artes performativas. Pelo contrário, o processo continua a ser maioritariamente entendido como um momento de fechamento e de construção do objeto sem que a decisão artística seja exposta e percecionada pelo público. Ou seja, o processo é entendido como uma fase que antecede o produto. Este produto quer-se otimizado, limpo, certo e seguro antes de ser mostrado e consumido pelo público. Sendo esta forma de fazer a dominante, Xposição rompe com estas premissas e assume outras lógicas a partir das quais deve ser olhada. Abaixo, faço algumas considerações sobre o trabalho, a partir das suas opções estéticas e da sua relação com o espaço e com os visitantes.
Comecemos pelos materiais. O ponto de partida é a agregação de objetos comuns que fazem parte do nosso quotidiano. São restos de materiais, desaproveitados ou entendidos enquanto lixo, como por exemplo: caixotes, tecidos, metais, esferovite, etc. Estes materiais com diferentes formas e texturas juntam-se numa composição que preenche a Sala Rosa da Rua das Gaivotas 6 (teto, paredes e chão). Na abertura, estes materiais estão pintados de branco, em certa medida remetendo para o tradicional white cube ou para uma tela em branco, que representa as possibilidades infinitas da criação naquele momento. Ao longo das três semanas, o objeto vai-se transformando e abandonando o branco. O processo é manifestamente indefinido, baseando-se no desenho intuitivo, que parte do fazer. Ou seja, é o fazer que abre espaço para a intervenção que se segue, sendo a sua globalidade um processo de continuidade, onde não existe uma sequência pré-definida. As opções estéticas da composição visual parecem remeter para um interesse plástico assente em diferentes materialidades, cores e desenhos, dialogando com o pensamento do ready- made e com a arte urbana. Ainda que os elementos visuais sejam representações várias, nem sempre direcionadas para um tema uno, a imagética incorpora, com maior ou menor abstração, ideias de lugar e de recinto, as dicotomias entre o excesso e o despojamento, e as dissemelhanças entre a cidade e o campo.
A relação deste objeto com o espaço vai para além da Sala Rosa, contaminando o foyer com um andaime, onde jaz uma tela de obras amarrotada. À entrada, uma bandeira preta numa cana de bambu comunica com o espaço público e com os transeuntes da Rua das Gaivotas, colocando uma carga simbólica para os visitantes que decidem entrar. O acesso à Sala Rosa, onde o aparato instalativo é maior, não é claro, implicando que os visitantes passem por uma pequena abertura de tecido e se baixem antes de conseguir entrar no mundo novo da Xposição. Os materiais preenchem a totalidade da sala, sendo impossível distinguir os seus limites físicos antes da intervenção. Este facto faz com que o objeto e o espaço se tornem um só, eliminando a normal relação galerística onde os espetadores entram no espaço e executam um percurso no seu interior enquanto observam diferentes peças. Aqui as peças estão aglomeradas num todo e fundem-se com o espaço. Assim, o objeto torna-se o próprio espaço e vice-versa.
É notória a intenção de não direcionar e estruturar a relação com o público, assumindo xs criadorxs o lugar de hosts aquando da chegada dos visitantes. Com exceção do momento inaugural, em que há uma estrutura preparada para acolher o público, nos restantes dias o trabalho assume a normalidade que aparenta pretender, designadamente a de um atelier aberto ao público. Os visitantes podem chegar e permanecer no espaço pelo tempo que assim o entendam, podendo existir uma ou outra conversa com xs criadores, que aí permanecem. A tentação de intervir nas paredes da gruta, ou seja, de participar no desenho é natural, derivando do reconhecimento e da proximidade que sentimos em relação aos materiais, ao texto de escrita livre e ao desenho fluido. Contudo, este trabalho não pretende essa participação, a não ser que haja um convite dos hosts para tal. Torna-se claro que xs criadorxs e os visitantes não estão numa relação de poder semelhante. Xposição é um espaço que pode ser confortavelmente habitado pelos visitantes, mas não é dos visitantes. É um espaço feito à medida dxs criadorxs e, primeiramente, para xs criadorxs. A ausência de protocolo nesta relação pode tornar a mesma, por vezes, incómoda, o que releva para a fraca emancipação que continuamos a ter enquanto visitantes e espetadores no confronto com o objeto artístico.
Um objeto tão incerto como este tem, ainda assim, de dialogar com as práticas naturais da instituição que o acolhe. Não obstante a Rua das Gaivotas 6 ser um espaço particularmente aberto a novas propostas, há, logicamente, alguns procedimentos a cumprir, desde logo a existência de uma inauguração e de um fim pré-determinados. Estas condições institucionais não implicam diretamente com o trabalho apresentado. Todavia, se este se centra no processo em construção aberto ao público, a verdade é que o momento inaugural se revela dissonante com o que se lhe sucede. Desde logo, a opção de não assumir a montagem inicial como parte integrante do trabalho. Ou seja, ao invés de partir do zero para a construção do objeto, existe uma construção inicial à porta fechada. No fundo, há uma preparação para a inauguração que, em certa medida, não parece corresponder às premissas conceptuais do objeto. Em suma, o processo acaba por ter início fora do espaço e antes da abertura de portas ao público, assumindo posteriormente a reconstrução permanente. Em sentido oposto, a desmontagem é aberta ao público, culminando num leilão de peças da Xposição aquando do final do Interfluências #4.
A programação deste trabalho acontece na abertura de um novo período da Rua das Gaivotas 6, agora com um novo programador (Pedro Barreiro). Este é um claro sinal que a instituição dá para o exterior, aumentando o espaço de possibilidades para as exposições (e espetáculos) que se seguem. Quanto ao objeto, o percurso artístico anterior dxs criadorxs e a hibridez disciplinar da proposta colocam-no numa tradição que procura romper com as premissas dominantes e instaladas da criação artística (muitas vezes provenientes dos contextos de formação), tanto no que concerne as opções estéticas como a prática artística seguida por estxs criadorxs. Xposição abandona noções de espetáculo, de eficácia e de sucesso, criando instrumentos alternativos de relação do objeto com o público, que são fundamentais para renovar a criação artística contemporânea.