PARA FORA DESTE MUNDO NÃO PODEMOS CAIR ⬤ Diana Carvalho & Pedro Cabrita Paiva

PARA FORA DESTE MUNDO NÃO PODEMOS CAIR ⬤ Diana Carvalho & Pedro Cabrita Paiva
Gaivotas Em Terra

por João Mateus

 

 

 

exposição com a curadoria de Tânia Geiroto Marcelino

5 – 24 Março 2022

 

1.

A manutenção de uma visualidade é hoje, no sentido mais panorâmico, uma reprodução das condições planetárias. Visualidade aqui não enquanto totalidade de todas as imagens, mas como visualização histórica e temporal[1]. Uma visualidade, porque me parece possível construirmos várias visualizações históricas.

Para Mirzoeff, autor que volta a trazer destaque ao tema da «visualidade», o termo refere-se à visualização da história e remonta ao séc. XIX, em particular ao trabalho de Thomas Carlyle. Para Mirzoeff, visualidade não se reporta apenas a uma perceção visual, mas um conjunto de relações e condicionantes técnicas, sociais, geográficas (etc, etc) que permitem, ou não, determinada imagem, leitura, narração, espaço ou visualização.

No séc. XIX coincidem vários aspetos relevantes, sendo um deles o facto de a produção artística deixar de ser o principal responsável pela manutenção desta visualidade. A perda desta manutenção gerou uma espécie de cisão, a partir da qual a produção artística deixa de gerir, para passar apenas a utilizar e atuar sobre esta visualidade. Pequeno parêntesis para referir que me parece a mim, mas ficará para a plateia responder, que esta cisão gerou uma espécie de trauma (no sentido de head trauma) do qual ninguém parece querer falar. Esta gestão e manutenção tem vindo a ser gradualmente transferida para outros, e encontra-se hoje dispersa nas mãos de diversos órgãos e agentes, por norma, coletivos. Não serão apenas grupos e plataformas multinacionais, mas, talvez, grupos dedicados à produção de informação, subsumidos dentro do que McKenzie Wark chama de classe vetoralista[2].

Desde o momento em que se dá esta cisão até hoje, vários aspetos importantes são atualizados: (i) Até ao séc. XIX, esta visualidade centrava-se no globo ocular humano. Desse momento para a frente, essa visualidade deixa de ser feita exclusivamente através da mediação ocular e centrada no aparato reticular. Passa a ser possível de ser constituída, por exemplo, pela mediação e interoperatividade de sistemas computacionais ou comunidades interespécies não-humanas[3]. Claro que os seres humanos permanecem elementos fundamentais nesta dinâmica, mas é importante que passem a existir outros agentes não-humanos que efetivamente produzam informação visual, e participem ativamente em processos de visualizações históricas; (ii) Assim sendo, uma visualização histórica já não pode ser considerada apenas segundo uma escala antropocêntrica, mas, sem dúvida alguma, ampliada para lá dessa centralidade. Uma visualização histórica terá hoje de ser, também, uma visualização das realidades e contextos interespécies, tecnológicos, climáticos e planetários; (iii) Uma manutenção de uma visualidade é, assim sendo, sempre um resultado dos aparatos e da techné que a tornam possível ou visível. De certo modo, só temos capacidade de ver e percecionar, o que temos capacidade de construir e conceber, o que leva autores a dizer que «realidades científicas não existem fora dos aparatos capazes de os revelar»[4]. O próprio termo manutenção (tal como o léxico «regulamentação», «conformização», «visualização», …) é, de forma muito óbvia, fruto da(s) linguagem(ns) dominante(s) do (início) do séc. XXI, fruto de uma perceção historicamente condicionada, e será, sem dúvida alguma, substituído, por conceções mais completas e complexas, que apenas serão tornadas possíveis graças à complexidade (por enquanto ainda indisponível) de futuros aparatos mais capazes.

 

2.

 

3.

Que o ser humano deixe de ser o principal agente de manutenção de uma visualidade é importante porque nos permite começar a perceber quem o poderá substituir, ou mais provavelmente, auxiliar[5]. Se entendermos visualização histórica como uma visualização do percurso do planeta e dos elementos telúricos, bióticos e não-bióticos, orgânicos e sintéticos, que o habitam e constituem, isto significa que os principais agentes responsáveis pela manutenção de uma visualidade são os que reproduzem, visualmente, as condições planetárias. Hoje, estes agentes são, por exemplo, a ciência climática, o programa Landstat, e quaisquer outras disciplinas, plataformas ou aparatos que se dediquem à simulação destas condições com o maior grau possível de resolução – que neste caso significa aproximação visual e temporal, a uma imagem que se procura reproduzir a si mesma.

Nesta ideia de visualidade enquanto visualização histórica coincidem (i) os diversos contextos e condicionantes que permitem certas visibilidades e impedem outras; (ii) a mediação e tradução de dados para informação visual inteligível e (iii) as metodologias e mecanismos práticos que permitem que determinada informação visual se materialize e torne visível e legível. Este último aspeto só é possível, justamente, porque passamos a utilizar tecnologias que superam as nossas limitações oculares (e por isso mesmo antropocêntricas).

O organismo coletivo composto por comunidades bióticas, não-bióticas, sintéticas e orgânicas, que cria imagens para se poder ver também enquanto imagem, tende para uma autorreflexividade e complexidade que parecem ser características dominantes do espaço político, do campo da informação visual e de qualquer composição geopolítica. Faz por isso sentido que vejamos várias construções e organizações que recorram à sobreposição, ao empilhamento, à acumulação, ao stacking[6], enquanto linguagem descritiva e metodologia de sistematização de conhecimento, ao mesmo tempo que vemos imagens, elas próprias, enquanto interfaces e mecanismos de verificação, autenticação e investigação – seja ela legal ou epistemológica. Nesta recursividade das imagens, dos objetos e dos organismos que se debruçam, re-presentam e reproduzem a si mesmos, reside a qualidade complexa dos sistemas que nos envolvem e organizam. Complexidade não enquanto adjetivo, mas enquanto componente e característica concreta dos atuais sistemas de organização[7].

Desenvolvimentos como estes devem levar-nos a perceber que o futuro da visualidade e da sua manutenção não dependerá exclusivamente apenas da nossa ação, mas igualmente a de outros agentes, com as quais será construída em conjunto, sejam eles orgânicos ou sintéticos. À medida que mais intervenientes passarem a integrar o processo de desenvolvimento de uma visualidade, e à medida que a amplitude do que pode ser visualizado e historicamente afirmado aumentar, também a amplitude semântica de mundo (enquanto sobreposição daquilo que existe e daquilo que é ocupado) irá aumentar. O visível (ampliado) irá tornar mais evidente a relação que a informação visual detém num entendimento e num diagnóstico que um corpo coletivo faz de si mesmo, e por outro lado, na conceção que temos dos nossos limites enquanto organismo.

No seu limite, a questão da visualidade leva-nos a questionar a aparente imutabilidade do organismo singular, o seu verdadeiro grau de interdependência e relação estabelecida com outros actants. Daqui podem decorrer conclusões curiosas, embora não exatamente novas, nomeadamente, que uma visualidade surge hoje aliada, ou até dependente, de uma fisicalidade[8] e de uma interdependência com outros agentes. Fará sequer sentido questionar a quem é que concedemos legitimidade para participar nesta manutenção? Quando é que deixa de ser viável continuarmos a criar imagens que se olham e reproduzem a si mesmas? E segundo que critérios e objetivos será exercida a manutenção ou gestão de uma visualidade daqui em diante?

Ao longo dos tempos a visão mantém uma posição privilegiada com as práticas de produção de conhecimento. Vários autores[9] têm vindo a sistematizar estas relações entre verdade e visão, que se tornam mais notórias com o aparecimento da perspetiva renascentista e que se desenvolvem mais tarde, durante o Iluminismo e o Positivismo, com uma aproximação à conceção de racionalidade e matematização dos fenómenos do visível. Esta relação mantém-se (e manter-se-á) ao longo do tempo. O que se irá alterar são os aparatos, interfaces e as visualizações segundo os quais fazemos esta mediações – entre visibilidade e conhecimento, ou entre representação e real. O foco desta dinâmica, em grande medida, não se encontra hoje no conhecimento que adquirimos a partir do que vemos, mas mais até, no conhecimento que se torna possível a partir do que sabemos que não conseguimos visualizar, do que sabemos ser duvidoso, e do que sabemos, ou intuímos, ser incorreto.

Da mesma forma que as interfaces e as visualizações de que fazemos uso se continuarão a adaptar e reformular consoante a nossa realidade tecnológica, também a relação entre visão e conhecimento irá, futuramente, adotar outras configurações. A manutenção de uma visualidade parece definir um processo intemporal. O que deixa de ser constante é a sua administração antropocêntrica, que se expande, a partir de agora, para abarcar visualizações históricas mecânicas, objetuais, não-bióticas, ecológicas e planetárias.

 

 

 

 

[1] Este texto parte da conceção de visualidade tal como Nicholas Mirzoeff a explorou em The Right to Look (2011).
[2] Wark, M. (2019). Capital Is Dead. Verso.
[3] Aqui refiro-me, respetivamente, à conceção de Stack de Benjamin Bratton, e ao projeto Internet of Animals.
[4] Vial, S. (2019). Being and The Screen. MIT Press, p. 45.
[5] Há uma reconfiguração em curso, da qual, por exemplo, a object-oriented ontology é sintomática. Curiosamente, o termo «objetos-imagens» apareceu como descrição dos trabalhos apresentados na exposição.
[6]  Neste caso refiro-me diretamente ao The Stack de Benjamin Bratton onde a «rede computacional global» é pensada segundo seis camadas que se sobrepõem verticalmente, e operam entre si desta forma.
[7] Estou aqui a aplicar a palavra «complexidade» em consonância com a aplicação que Daniel Innerarity faz da mesma no seu trabalho.
[8] Daí que autores como Patrícia Castello Branco, tenham vindo a falar da «função háptica» das imagens.
[9] Destaco mais uma vez o trabalho de Patrícia Castello Branco, Imagem, Corpo, Tecnologia. A Função Háptica das Novas Imagens Tecnológicas (2013) e o texto Imagem e Tecnologia: Ocularcentrismo Háptico e Não-Háptico (2022) presente no livro O Fim da Verdade Objetiva. Ciclo de conversas e debates no Atelier-Museu Júlio Pomar.

 

 

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